"Deus
está morto", bradou Nietzsche em sua feroz crítica ao cristianismo, ao
passo que o declínio da tragédia, também detectado pelo filósofo alemão,
representou também uma passagem do pensamento mítico para o lógico...
por Simone Nardi Grama*
Os gregos foram os responsáveis por espalhar pelo mundo a
sabedoria acerca da ciência e da religião. Para eles a Grécia era o
centro da Terra, e o Monte Olimpo
, na Tessália, era a morada de todos os deuses, de onde eles comandavam
a bel prazer o destino dos homens. Havia um deus para cada ato, para
cada sentimento dos filhos da Grécia. Ares, deus da guerra; Eros, deus
do amor; Afrodite
, deusa da beleza; Apolo, deus da música; Dionísio, deus do vinho,
entre tantos outros deuses que faziam parte e regiam a vida grega.
O mundo grego era sagrado. E essa estreita ligação com os
deuses igualmente permitia uma profunda união com a natureza,
propiciando o que seria para eles uma vida harmoniosa e equilibrada,
graças a duas potências cósmicas: Dionísio e Apolo. Porém, ocorreu um
distanciamento em algum ponto da história grega, que acabou por causar o
que Nietzsche chamaria de decadência do modo de viver grego, a tragédia
havia sido esquecida, a morte precoce da Filosofia teria sido então
anunciada, segundo o filósofo , por culpa da dialética socratiana.
Nietzsche expõe claramente em suas obras esse conflito e esse
distanciamento entre homens, deuses e natureza, dois mundos artísticos e
antagônicos que uniam homem e natureza, cada um em seu mundo, um de
sonhos e de beleza onírica , outro de uma profunda realidade. No entanto
um deles havia morrido para o mundo.
Monte Olimpo
Mais alta montanha da Grécia, com 2.917
metros de altitude, o Monte Olimpo ao qual se refere o texto fi ca
próximo ao Mar Egeu, na Tessália, local que, de acordo com a mitologia
grega, seria a morada dos principais deuses do panteão. No entanto, o
nome é comum na Grécia e há diversos lugares com essa denominação. E até
o planeta Marte tem o seu Monte Olimpo: em 1971, a sonda espacial da
NASA Mariner 9 detectou um vulcão extinto em Marte, o maior do sistema
solar, que sendo batizado com o nome Olympus Mons. |
Afrodite
Amor, beleza, sexualidade... Eis os
atributos, para a mitologia grega, de Afrodite, a deusa de tantos
amantes. Em outras tradições míticas e culturais, há deusas com
características análogas, como a Cypris (no Chipre) e Hátor (Egito),
além, é claro, da deusa romana Vênus. |
Mas, seria possível relacionar a ideia da “Morte de Deus” em
Nietzsche com a morte do deus grego e, consequentemente, da tragédia na
Grécia, buscando na passagem do pensamento mítico para o pensamento
lógico um dos pontos principais e que teria sido o causador da
decadência dos deuses gregos, já que parece ocorrer uma perda maior na
crença em Dionísio nessa transição, tal como se o autor dissesse que a
metafísica platônica do mundo sensível e o mundo das ideias, que
subjetivamente iremos comparar a Apolo e Dionísio ou da necessidade de
um deus, houvesse perdido qualquer sentido de existir dentro de uma nova
racionalidade que, para Nietzsche, havia sido decretada por Sócrates?
DEUS ESTÁ MORTO, A TRAGÉDIA ESTÁ MORTA!
Essa importância dos deuses na Grécia é narrada em o Nascimento da Tragédia,
que foi publicado em 1872, nele Nietzsche fala sobre a oposição entre o
apolíneo e o dionisíaco, entre a razão e a emoção, dois deuses
cultuados pelos gregos, duas pulsões cósmicas poderosas e diferentes
entre si. De um lado, Dionísio, deus do vinho, inebriador dos sentidos
humanos, tomando-os de prazer e libertando-lhes os instintos, o coro da
tragédia grega, no entanto, libertos de Dionísio, retornariam os homens
ao estado apolíneo, da razão cotidiana. Apolo, deus da música e da arte
que, diferentemente de Dionísio, é um deus mais racional, intelectual,
estético e moderado. A dialética entre esses dois deuses é que permitia
aos gregos viverem em equilíbrio. Toda a vida grega era retratada nesse
modo de viver equilibrado, na alternância das pulsões cósmicas desses
dois deuses, o que teria permitido o surgimento da cultura trágica na
sociedade grega, sendo que essas duas potências transitavam na ética, na
estética e na religião dos gregos.
Para Nietzsche, os seres humanos eram a ligação entre essas
duas potências e jamais deveriam ter se afastado delas. Foi esse
afastamento que teria causado o desequilíbrio dos dias atuais, muito
mais ligado às ações racionais do que às ações inebriantes, para ele o
culpado desse afastamento teria sido Sócrates, que teria feito com que a
natureza acabasse por ser humanizada e racionalizada ao extremo. “(...)
A grande tragédia grega se apresenta como característica do saber
místico da unidade da vida e da morte, nesse sentido, constitui uma
‘chave’ que abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a
arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem
causas e causas sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser
ignorada [...] Segundo Sócrates a tragédia desvia o homem do caminho da
verdade: ‘uma obra só é bela se obedece à razão’”.
(Pensadores,1999,p.9)
As antigas religiões gregas, bem como seus deuses,
desapareceram ao deixarem de ser cultuados pelos seres humanos, a razão
socrática venceu, os deuses morreram.
Vejamos como Nietszche anuncia em seu aforismo 125, A Gaia Ciência , a morte divina:
O Insensato – Não ouviram falar daquele homem louco que em
plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs- -se a
gritar incessantemente: ‘Procuro Deus! Procuro Deus?!’ – E como lá se
encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com
isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles.
Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele
tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para
os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou- os
com seu olhar. ‘Para onde foi Deus?’, gritou ele, ‘já lhes direi! Nós o
matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fi zemos
isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja
para apagar o horizonte? Que fi zemos nós, ao desatar a terra do seu
sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para trás,
para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em
cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um anda infi nito?
Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele ainda mais
frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de
manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o
cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodreceram! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais
sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos
punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos
lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A
grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós
mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer digno dele? Nunca houve
um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa deste
ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!’ Nesse
momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes:
também eles fi caram em silêncio, olhando espantados para ele. ‘Eu venho
cedo demais’, disse então, ‘não é ainda meu tempo. Esse acontecimento
enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos
homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas
precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo
para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a
mais longínqua constelação – e, no entanto, eles o cometeram!’ –
conta-se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias
igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para
fora e interrogado, limitava-se a responder: ‘O que são ainda essas
igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus’?
A Gaia Ciência
Lançado em 1882, A Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft)
foi escrito no estilo aforismático característico de Friedrich Wilhelm
Nietzsche. Nessa obra, Nietzsche mencionou pela primeira vez Zaratustra,
o profeta persa, personagem central de seu livro mais famoso, Assim Falou Zaratustra. |
Não se deve compreender o aforismo acima através de uma visão
ateísta, mas deve-se compreendê- lo tal como é analisado por Nietzsche a
morte dos deuses gregos, na verdade a morte dionisíaca, o afastamento
da emoção pela razão extrema, o desequilíbrio entre homens e natureza, a
perda do equilíbrio entre duas pulsões cósmicas que permitiam e
forneciam aos homens a vontade de viver. O que teria de semelhante a
morte desses deuses com a morte do deus nietzscheniano?
A princípio pode-se questionar: Quem anuncia no aforismo a
morte de deus? O Insensato, o homem louco, aquele que estava mais
próximo à natureza, que ainda consegue ver em tudo o verdadeiro conceito
do realmente sagrado, do trágico. Quem questiona sobre a morte de deus
bem pode ser o homem dionísico, com seu lado desmedido e cheio de uma
vontade de viver embriagante, aquele mais ligado a Physis que conhecia e
não temia os trágicos momentos do existir, assim como a religiosidade
em torno deste que bem poderia ser o epicentro da religião grega,
Dionísio havia morrido, o Deus que havia igualmente sido morto e
enterrado pelos homens era igualmente procurado por ele, pelo insensato,
pelo louco.
Se Dionísio trazia em si, como refere Nietzsche, aquela potência que
permitia aos homens arrebatar-se pelo êxtase, transformando-os muitas
vezes em algo para além de si mesmos - do homem do dia a dia, com suas
elucubrações e deveres – sua morte seria inevitável diante da
racionalidade apolínea, tal como o deus morto. Tal como a racionalidade
socrática matou os deuses, a racionalidade humana havia matado Deus, não
havia mais espaço para a divisão entre o mundo das ideias e o mundo
sensível, por isso o anúncio “deus está morto”.
Se Nietzsche teve coragem de proclamar que Deus estava morto,
teve ainda mais coragem de dizer que a decadência da Filosofi a e dos
seres humanos havia ocorrido no exato momento em que ele, o ser humano,
decidira romper com o equilíbrio entre ele e a natureza. Esse rompimento
com a natureza é de onde viria a verdadeira força vital dos seres
humanos segundo Nietzsche, era expressa na visão de Tragédia,
responsável pela unidade entre vida e morte e com o qual os gregos
viveram durante anos.
E assim como o louco que diz: “‘Para onde foi Deus?’, gritou
ele, ‘já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu.’” (Nietzsche), podemos
dizer que para Nietzsche, a superação da razão encontrada na pulsão
apolínea matou não somente os deuses gregos, mas o deus morto por
Nietzsche ao separar Mythos e Logos, e esse ato trágico é bem claro na
frase do louco que mais uma vez questiona: “Que fi zemos nós, ao desatar
a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos
nós?” (Nietzsche).
SEPARAÇÃO ENTRE APOLO E DIONÍSIO
Que fizeram os seres humanos ao separar o dionisíaco do apolíneo?
Ao matar aquilo que era mais sagrado e que, nas mãos dos seres humanos,
sangrou? Seria necessário reaprender a viver com o peso desse
assassínio, já que nos afastamos, por opção, do equilíbrio com a
natureza. A verdade que buscávamos no Logos, com a morte de deus virou
ficção e sequer nos apercebemos disso. Assim também, a morte dionisíaca
não nos levou à verdade que Sócrates esperava, mas acabou por nos levar
a viver uma farsa de uma natureza que não nos pertence: “Abolimos o
mundo verdade: que nos restou? O aparente, talvez?... Não! Com o mundo
verdadeiro abolimos também o mundo aparente”. (Nietzsche). Um mundo
meramente aparente que carregamos como um mundo verdadeiro, não morrem
apenas os deuses, mas morre também a natureza trágica humana, não apenas
a grega.
Preciso é também, nos atentarmos a quem o louco, o insensato
pergunta sobre deus: “E como lá se encontrassem muitos daqueles que não
criam em deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele
está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse
um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio?
Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros” (Nietzsche).
O louco pergunta por deus àqueles que não mais acreditavam
nele. Nós que aqui estamos, não mais acreditamos em Mythos, nos
habituamos ao Logos como se fosse ele nossa única razão de viver, nosso
único modo de vida. Temos medo de experimentar o dionisíaco, de nos
deixarmos ser o que realmente somos, por isso somos todos razão,
questionados por um louco sobre nosso equilíbrio com a natureza,
equilíbrio este que antes existia, mas que nossa razão fez desaparecer e
dia a dia enterramos os deuses, ao manter essa cisão: “Com tua espada
de fogo, despedaçaste o gelo da minha alma, e esta já corre ao mar da
alta esperança como corre a torrente impetuosa... deslumbrante de
alegria e liberdade.” (Nietzsche).
O culto dionisíaco deixou de existir na Grécia, sua ação
inebriante que exaltava o lado humano, considerado por Nietzsche o mais
puro e o melhor, foi esquecido e enterrado, o mito sucedia assim à
lógica. O que no leva a relembrar o aforismo 124 de Nietzsche em A Gaia Ciência:
No horizonte do infinito – Deixamos a terra firme e subimos
a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós, e mais, destruímos todos os
laços com a terra atrás de nós. E agora, barquinho, toma cuidado! Junto a
ti está o oceano, é verdade que nem sempre ele ruge; e estende-se às
vezes como sede e ouro, e um sonho de bondade. Mas, virão horas em que
reconhecerás que ele é infinito e que não existe nada que seja mais
terrível que o infinito. Ah, pobre pássaro, que te sentias livre e que
esbarras agora contra as grades desta gaiola! Pobre de ti se fores
dominado pela nostalgia da terra, como se lá tivesse havido mais
liberdade... agora, já não há mais “terra” ! (Nietzsche,2007,p.115)
A morte de deus é mais uma vez a superação da metafísica, pois a compreensão de deus como Arché
e Telos de todas as coisas, e tal como a separação entre o que era
apolíneo e dionisíaco, a morte de deus ou no caso dos gregos a morte da
tragédia, deixou a todos nós sem um rumo a seguir, não há mais a mesma
estabilidade de outrora ou fundamentos que nos permitam enxergar mais
adiante, sua morte roubou nossa referência.
Arché
Arché é a expressão utilizada pelos
filósofos pré-socráticos para designar a origem das coisas, ou melhor, o
princípio que rege o início e o desenvolvimento da vida. Tales de
Mileto considerava a “água” o arché; Xenófanes, a terra etc. |
A morte de deus em Nietzsche é uma clara crítica ao
cristianismo platônico, porém a morte da tragédia é também a morte a
Dionísio e a sua pulsão na natureza humana. A tragédia, ao contrário do
que dissera Sócrates, não tinha a função de iludir os homens, mas de
mostrar-lhes toda a profundeza do mundo no qual existiam, para que
percebessem a verdadeira natureza, fosse ela maravilhosa ou terrível
dentro da existência dos homens, o certo é que ela só era possível se
houvesse equilíbrio entre o apolíneo e o dionisíaco, sem um ou outro, a
tragédia se findaria: “Eis a nova contradição: o dionisíaco e o
socrático, e por causa dela a obra de arte da tragédia grega foi
abaixo”. (Nietzsche).
Com o fim da ideia platônica de mundo sensível e mundo das
ideias, a morte de Deus igualmente havia sido decretada, não havia
espaço para ele na realidade humana, tal como não havia mais espaço para
a tragédia e para Dionísio na vida dos gregos, os deuses assim vencidos
pela razão humana, morreram.
*Simone de Nardi Grama é
graduada em Filosofia e especialista em Filosofia Contemporânea e
História pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).
Fonte Filosofia: Conhecimento Prático
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita
André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão Espírita Clara Luz
que
discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e
Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.
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