A própria filosofia que prega contra a opressão, dentro de seu
antropocentrismo cego e tradicionalista, gera opressões ainda mais
cruéis. Filósofos que pregam para que “se libertem os excluídos”,
excluem o direito de viver de todos aqueles a quem, em teoria, defendem,
pois a teia da vida é muito mais longa do que ele pode supor. Toda vez
que se sentam para fazer um simples ritual como o de comer, iniciam um
mecanismo de opressão que desfaz, literalmente, tudo aquilo pelo qual
trabalharam e teorizaram. Esse antropocentrismo não os deixa visualizar
que são eles também, os principais pilares que sustentam a opressão,
quando se propõe a excluir uma classe que lhes é singular, em favor
daquela que lhes é totalmente aprazível.
O Filósofo diz lutar contra uma opressão quando é aquele que, com
suas palavras, argumentações e teorias, o que mais pode oprimir ao
excluir “outros” de suas ideias, conseguindo abster-se da culpa somente
porque, fechado em si mesmo, não consegue enxergar o que faz,
infelizmente existem muitos filósofos ainda presos a Caverna platônica.
Para libertar a vítima, é necessário que primeiro o Filósofo se liberte, pois ele é, em si, vitima de sua própria opressão.
A Filosofia atual é uma causa da opressão porque se recusa a enxergar
além de si mesma e de seu antropocentrismo, porque não consegue
enxergar além dos seres humanos, porque idolatra antigos filósofos
antropocêntricos e vaidosos e transmite essa mesma missão aos futuros
professores de Filosofia, numa cadeia sem fim que oprime a própria
Filosofia. Nós combatemos os professores de ciência que dessensibilizam
seus alunos durante uma aula de vivissecção, combatemos os doutos em
medicina porque fazem com que os futuros doutores matem animais alegando
que isso, é em defesa da vida, e ignoramos que essa batalha acontece
dentro de um curso que deveria privilegiar o “Pensamento” – Hegel se
refere a liberdade de “pensar um pensamento”, no entanto continuamos,
ano após ano, pensando o que outros seres humanos pensaram -. Aprendemos
filosofia, porém muitos não aprendem a filosofar, a realmente, se
libertar. A Filosofia que deveria se essa “Mãe que Liberta”,exclui e
oprime os seres que lhe são singulares e, nesse círculo fechado em que
vivemos, sabemos que qualquer ato contra o “Outro”1 se volta contra o
interlocutor. E como podemos encarar esse “Outro”? Enrique Dussel coloca
que o “Ser” precisa deixar de ser metafísico, fechado em si mesmo, que é
preciso se relacionar com outros seres, trocar experiências, sua
Filosofia de Libertação passa a ser refletida no “Outro” e a Ética se
materializa na figura do ser ‘Oprimido”, da vítima, com isso existindo
uma razão crítica libertadora. A questão é: Quem é esse “Outro”? Para a
filosofia antropocêntrica esse “Outro” seria legitimamente os seres
humanos, porém não são apenas eles os oprimidos da dor, há um outro
“Outro”, muito mais oprimido e marginalizado:o animal não humano.
Toda Filosofia busca uma ética para melhorar o mundo; todas as
filosofias falharam em determinadas épocas, em levar os homens a esse
melhor, todas, senão a esmagadora maioria era antropocêntrica.
Dussel nos mostra uma filosofia que transporta o ser ontológico para o
ser material, o Ser, esse Outro, através da concepção de alteridade2
faz com que eu também exista através do outro, da visão do outro, de
forma que eu possa compreender o Mundo a partir da compreensão desse
“Outro”. Esse “Outro” não pode mais ser deixado de lado, ser encoberto
ou esquecido, não pode mais ser dominado, excluído ou subjugado por
aqueles que se acham os “senhores” superiores. Ao trazer essa
materialidade para o Ser, descobre-se então a vítima, o principal motivo
da Ética dusseliana, pois a vítima se enquadra em qualquer povo, em
qualquer continente, em qualquer ethos humano, e vamos adiante em nosso
pensamento, essa vítima se enquadra no todo pertencente a Vida, animais
humanos, animais não humanos e até mesmo nas plantas.
Mas a Filosofia ainda sim está repartida entre animais humanos e não
humanos, porém uma leitura rápida e livre de qualquer antropocentrismo
pode nos mostrar uma nova visão, que muitos filósofos ainda não
perceberam:
” O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam clamando por justiça:
__ Tenho fome! Não me mates!Tem compaixão de mim!- é o que exclamam esses infelizes.
[...] Ele simplesmente grita. O grito -enquanto ruído, rugido, clamor,
protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu
sentido apenas por quem tem “ouvidos de ouvir”- indica simplesmente que
alguém(um ser- grifo meu) está sofrendo e que do íntimo de sua dor nos
lança um grito, um pranto, uma súplica.É a interpelação primitiva”3
Essa, a máxima da Filosofia da Libertação: A escuta do grito do oprimido.
Livres do antropocentrismo filosófico que cega a muitos, de quem seria, também, esse grito?
” O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam clamando por justiça:
O animal oprimido e torturado, o que vê ser destruída sua carne
sofredora, todos eles simplesmente clamam, a seu modo, por justiça e por
liberdade, pois seu desejo inerente é o de permanecer vivo, sem sofrer
qualquer abuso, dor, exploração. No antropocentrismo o que ocorre é
simplesmente a opressão do oprimido com outra vítima humana.
“Ele simplesmente grita.O grito – enquanto ruído, rugido, clamor,
protopalavra ainda não articulada, interpretada de acordo com o seu
sentido apenas por quem tem “ouvidos de ouvir”
É nós temos ouvidos de ouvir e olhos de ver, os animais demonstram
claramente quando estão com medo, fogem, se debatem e gritam em
desespero, como não enquadrar esses indivíduos no rol de vítimas
oprimidas?
“indica simplesmente que alguém (um ser- grifo meu) está sofrendo e
que do íntimo de sua dor nos lança um grito, um pranto, uma súplica. É a
interpelação primitiva”
O pedido de socorro desses indivíduos que são marginalizados pela
vaidade filosófica de fazer valer apenas a palavra humana, de achar que
somos melhores, que somos o inicio, o meio, o fim, quando somos apenas
vítimas de nós mesmos. Talvez o maior erro filosófico até hoje seja seu
antropocentrismo exarcebado, sua visão de que apenas o indivíduo humano
mereça os cuidados da ética e da moralidade, e vemos até hoje que a
Filosofia se debate na questão ética, sem achar solução para os
conflitos que se avolumam pelo Mundo, sejam as guerras ou a opressão dos
indivíduos.
O certo é que, nenhuma ética vencerá esses impasses enquanto não
levar em consideração a vida, como medida de todas as coisas, não
importando a forma que ela tome diante de nossos olhos.
O certo hoje é que o Filosofo não vê que suas palavras, cheias de
argumentos e razões libertárias esbarram no preconceito antropocêntrico
delas mesmas ao afirmar que, libertando uma vítima humana, que também
oprimi muitas das vezes, essa opressão irá cessar, como se não
estivéssemos ligados a mais nada, a não ser a outros seres humanos.
Somos fios de uma só teia e se um dos fios se parte, toda a teia corre o
risco de desaparecer.
Enquanto não conseguirmos enxergar com clareza quem são realmente os
“Outros” aos quais nos referimos nas teorias filosóficas, a quem devemos
estender nossa alteridade, e quem são realmente as “vítimas”, todos
seremos opressores e todos seremos oprimidos.Não é mais possível separar
classes para lutar pela vida, pois a Natureza é única e é ela quem dita
as regras, não os Filósofos. Se antes o homem era o “tudo”, hoje não
precisamos filosofar para saber que a Vida é o principio primordial, a
essência universal do que somos e do que seremos.
É impossível conceber que a morte solitária de um boi no abatedouro, o
bife no prato do filósofo e a fome dos excluídos não tenha qualquer
relação entre si. Mas ao defender algumas vítimas, pois o filosofo
antropocêntrico não defende todas e sim somente as que elege, ele cria
erroneamente essa separação, como se nossas vidas não estivessem ligadas
a nada a não ser a outras vidas humanas, e é perfeitamente sabido que
na teia da vida a humanidade é apenas mais um fio que forma o todo, que é
formado por outros fios que não devem ser desconsiderados, criando a
possibilidade da teia se enfraquecer ou pior, destruir-se com a mais
leve brisa.Na teia da vida, cada fio tem sua função total e igualitária.
É preciso uma nova filosofia de Libertação Ética, mas de libertação
da vida igual e totalitária, pois o oprimido que o filósofo defende
também é opressor, e sendo assim, cria-se um circulo de opressão
imperceptível a olhos totalmente antropocêntricos que, se não mudado,
jamais terá um fim, e continuaremos incessantemente buscando por uma
ética que impeça holocaustos, que impeça a fome, que impeça a dor e os
tormentos, enquanto de olhos fechados, sentamo-nos sobre uma pilha de
corpos mutilados, torturados e famintos que provocamos todos os dias
porque não conseguimos enxergar nos animais, seres que merecem nossa
consideração na teia da vida.
Como não ser oprimido se eu igualmente oprimo usando da força e de um
direito que me outorguei tal qual aquele que me oprime? Nota-se aqui
que o pensamento do opressor é sempre o mesmo, seja a vítima quem for e
que forma tiver. O filósofo defende a vítima, mas dá força ao opressor
para que continue agindo.
É mais do que necessário uma Filosofia de Libertação Animal, nós como
animais necessitamos nos libertar desse antropocentrismo
tradicionalista e destruidor, que acoberta os olhos dos filósofos e os
leva ao precipício da vida que eles dizem defender. Quando se defende a
vida, não se pode escolher ou eleger privilégios. A causa de todos os
problemas da modernidade estão ancorados exatamente nesse pensamento
antropocêntrico que insiste em permanecer. O homem não pode ser a medida
de todas as coisas, isso é eleger privilégios, a Vida em si, deve ser a
medida de todas as coisas, pois ela é reguladora, é meio termo, é
imparcial, está em tudo e permeia tudo, ela é o motivo da liberdade e o
fim da opressão. Enquanto a Vida não for tida como elemento primordial,
não haverá qualquer ética capaz de moralizar o caráter humano.
Não são apenas os oprimidos humanos que clamam por justiça, mas se
tirarmos de todos os seres, as formas4, veremos a todos apenas como
Vida, e todas as vidas clamam por justiça, somente filósofos que ainda
não pensam livremente é que possuem ouvidos surdos e olhos cegos para
não compreender que a base do Mundo é a vida e não os seres humanos,
esse não lutam pelo fim da “Dor”5. A importância de cada ser está na sua
existência, em sua participação na teia da Vida, é preciso ao filósofo,
libertador e ético, que reconheça que até então, apesar de tudo o que
aprendeu e buscou, ainda se encontra preso ao poder da sociedade que o
rege, vendo o que ela o obriga a ver, falando o que ela o obriga a dizer
e nada mais.
Se fôssemos tão importantes como nos imaginamos, não estaríamos
atravessando tantos problemas de ordem climática como estamos. Se
chegamos a esse ponto do caos ecológico de um sistema que era perfeito,
de uma teia que era perfeita, é porque nossa filosofia preocupou-se
apenas com a vida de determinados indivíduos renegando outros a
marginalidade. Somos os causadores desse desequilíbrio e somos
responsáveis pela opressão e pelos oprimidos. Quando a teia se desfizer,
levará com ela aqueles que ignoramos, tanto quanto aqueles que
idolatramos e elegemos como nosso objeto de defesa, porque não
conseguimos aceitar que a teia da vida era feita de cada ser composto de
matéria e forma, de cada ação que a tornava mais firme. A decisão agora
é simplesmente: aprender filosofia ou aprender a filosofar, e filosofar
é amar, é desprender-se dos preconceitos arraigados no ser, somente
assim poder-se-á criar uma ética capaz de evitar a opressão, de evitar
as mortes e as injustiças, libertando-se a vítima, elimina-se para
sempre o opressor, essa sim, a Filosofia da Vida.
Referências Bibliográficas
PANSARELLI, Prof. Mestre Daniel – Algumas
questões filosóficas contemporâneas – Dussel , a Filosofia da Libertação
e o Eurocentrismo- Palestra proferida em 11/10/2008 .
DUSSEL, Enrique – Filosofia da Libertação e Ética da Libertação
ARISTÓTELES – Os Pensadores- Abril Cultural
Notas
1 Na descoberta do “outro”, o ser
filosófico, até então metafísico, deixa essa ontologia para se tornar
material, passa a existir, a ter um rosto, ou seja se completa em si e
em nós mesmos.
2 Quando passamos a compreender o outro ser, nos colocando no lugar
dele, nos completando através dele, quando a sua visão, passa a ser a
nossa, como se enxergássemos pelos olhos dele.
3 Livro- A filosofia dusseliana da libertação e sua ética.
4 Aristóteles dizia que dentre tudo o que éramos, em essência, em
substância, éramos todos matéria e forma. Vamos filosofar, pois nos é
permitido pensar livremente. Somos todos seres integrantes do Planeta,
alguns moldados na Forma Humana outros na Forma Animal e somos todos
matéria, ossos, sangue, pele, órgãos.E como dizia grande filósofo, só se
pode separar forma e matéria no pensamento, então, se tirássemos a
Forma de todos os seres e deixássemos somente a Matéria, coração,
sangue, pele, veremos que a forma é algo irrelevante para separar quem
deve viver e quem deve morrer.
5 Toda injustiça causa dor, independente do ser que venha a atingir.
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita
André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão Espírita Clara Luz
que
discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e
Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.
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