sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Kruzada , pela Vida (Conto)

Imagem: Onça-Pintada
 
Os olhos de Kerodon desceram pela figura trêmula de Falco. Ele havia perdido a robustez de anos atrás. Seu rosto envelhecia e seus cabelos branqueavam com o passar dos meses, mas ainda era o mais bravo guerreiro que Kruzada já havia conhecido. As cicatrizes espalhadas pelo corpo provavam a sua coragem. Cada um deles lhe devia a vida. Falco deveria ser o líder, não ele.

O Príncipe correu o olhar pelos poucos guerreiros que lhe restavam. Nem toda a coragem do mundo os ajudaria a vencer os Ycrons. Não havia chance para eles, mas ao menos as mulheres e as crianças estariam a salvo. 

Kerodon era um guerreiro decidido. Com seus quase dois metros de altura, era ele quem decidira lutar ao invés de entregar-se e servir ao exército de Gorgun. Não, jamais ele submeteria seu povo a tal humilhação. Jamais os deixaria morrerem nas minas de Alderyon. Que morressem todos os seus guerreiros, mas que o povo de Kruzada permanecesse livre.

Livres para vagarem pelas florestas. Livres para nadarem nos lagos perfumados de Betsaym. Apenas livres das correntes negras dos Ycrons.

Kerodon fechou os olhos. Há três dias que não dormiam, apenas lutavam. O exército inimigo era  superior em armas e homens, embora os Ycrons não pudessem receber a honra de serem chamados de homens. Eram na verdade seres bestiais, uma raça de homens que se deixara levar pelo poder , pela ambição e pela ganância. Que devastavam o mundo em busca de riquezas. Que matavam sem se importarem com a vida. 

Bem pouco possuíam da forma humana que lhes dera origem. A cabeça desproporcional era grande e ovalada, coberta por uma pelagem negra que lhes cobria até acima dos lábios. Os olhos  eram vermelhos e os dentes eram como as presas de antigos animais selvagens. Possuíam três dedos nas mãos e dois nos pés enormes e achatados. A pele, desprovida de pêlos, era grossa e ressecada como as escamas de um peixe. Definitivamente eles não eram mais homens, sua selvageria os haviam transformado nas bestas que eram hoje.

Tayassu aproximou-se do Príncipe e sentou-se ao seu lado, sabia que teriam poucas horas de vida, mas não temia a morte pois sabia que seu povo sobreviveria àquela batalha.

      Lembra-se dos aromas de Betsaym ?

      Jamais esquecerei- respondeu Kerodon abrindo os olhos e fitando o rosto do amigo.

Onça
      Me banhei lá antes de vir com nosso exército, ainda posso sentir seu sabor e seu cheiro. Cariama adorava os lagos. Sentirei saudades deles. Quando os Ycrons nos vencerem, na certa destruirão  nossas belezas e a Kruzada que conhecemos deixará de existir.

      É verdade Tayassu, mas nossa honra e nosso desejo de liberdade prevalecerão sobre os Ycrons.

      E muitos deles irão perecer antes que eu caia- falou Felis juntando-se aos dois amigos

Kerodon fitou-os com olhar cansado. Felis era um poderoso guerreiro, seu cabelo amarelo-avermelhado chamava e muito a atenção. Era pequeno, mas valente. A noite levava grande vantagem sobre os inimigos, tal a sua astúcia e visão. Trazia um pesado machado numa das mãos e garras poderosas na outra.

Gato
O Príncipe correu então os olhos pela pequena legião de guerreiros que o acompanhara até o desfiladeiro. Alouata era corpulento e ágil. A barba longa e trançada estava agora mal cuidada. Sempre fora um dos principais guerreiros que possuíra. Ao seu lado, Cereus se encontrava parado, trazia no rosto pinturas escuras que o confundiam com a vegetação. Melro assobiava, embalado pelas antigas canções de seu povo. Alguns outros dormiam, aguardando a madrugada feroz que se aproximava. Rezando para Kaneus, o deus de seu povo, para que levasse os guerreiros mortos ao paraíso de Guenardy, onde repousariam em paz.

Um rosto suave apareceu diante de seus olhos. Columba, sua adorada esposa. A mulher que levava no ventre seu filho. Despedir-se dela havia sido mais duro do que enfrentar mil Ycrons. Mas precisavam morrer para que seu povo pudesse viver. Tinham que enfrentar o inimigo por tempo suficiente para que seu povo pudesse escapar de Kruzada rumo às terras desconhecidas ao Norte de Karan. Somente lá eles teriam uma chance de reconstruir o povo soberano que Gorgun tentava aprisionar. 

Lá eles seriam protegidos pela ordem dos Sirenia. Manati, seu principal líder cuidaria bem de seu povo, ensinado-lhe novos hábitos, até que pudessem se sustentar sozinhos naquelas terras estranhas.

Puma
A madrugava esfriava. Nem mesmo as Luas de Kruzada conseguiam iluminar o céu avermelhado. O eco de uma trombeta ecoou ao longe. Outras se seguiram à ela. Era o aviso de Gorgun que seu exército se preparava para atacar. 

Imediatamente Kerodon reuniu seus homens e olhou profundamente no rosto de cada um deles.

      Kaneus irá nos proteger. Àqueles que tombarem hoje, viverão  a fartura de Guenardy. Preparando o caminho para os outros que um dia os seguirão. Lembrem-se que não lutamos por nós, e sim por um povo inteiro. Kaneus esteja em vossos corações.

Quando Kerodon acabou de falar, eles já conseguiam ouvir os gritos alucinados dos Ycrons que invadiam o desfiladeiro.  Era uma visão aterradora. Milhares deles avançavam na direção do exército de Kruzada. Se passassem, em menos de duas horas alcançariam as mulheres que fugiam para Sirenia. 

      Lembrem-se meus amados irmãos, eles não devem atravessar o desfiladeiro. Pelo menos não até ao amanhecer. Quando Manati já terá em segurança nosso povo. Lutem até o último guerreiro e que Kaneus esteja com todos vocês.

Kerodon ergueu a espada que empunhava e avançou contra o inimigo, numa luta em que só um lado poderia vencer.

Leão
Durante horas, a árdua batalha desenhou-se nas  rochas do desfiladeiro de Kruzada. Em menor número, mas lutando com o coração, os guerreiros de Kerodon conseguiram manter os Ycrons presos entre as rochas até o amanhecer. Sabiam que seu povo já estava em segurança, mesmo assim lutavam, agora por sua liberdade.

Gorgun, o chefe dos Ycrons, apenas observava seu exército tentando esmagar um inimigo inferior, mas determinado. Ele não notou a aproximação de Cereus. Tampouco viu Alouata disparar seu arco.

Seguia agora em direção a Kerodon, o gigante que derrubava seus homens com um único golpe. Kerodon se mostrara um guerreiro forte. Ao contrário do que imaginara. Eram uma raça que deveria ser destruída ou destruiriam com aquela coragem e perseverança ,seu império de terror.

Quando Gorgun ergueu seu machado contra as costas de Kerodon, tudo o que sentiu foi uma flecha trespassando-lhe o peito. Mesmo assim conseguiu atingir o Príncipe que caiu inerte sobre o chão rochoso.

Arara
Os poucos Ycrons que haviam sobrado debandaram. Felis, Polyborus, Tinamus entre outros, perseguiram os Ycrons para fora do desfiladeiro. Sorriam por terem conseguido vencer uma batalha que já estava perdida. Quando retornaram, seus corações se oprimiram. Kerodon agonizava.

Ao seu lado,  Caiman e Ateles faziam seus ritos para o moribundo. Caiman ergueu-se e fitou com olhos embaciados, o rosto de Falco que chorava a perda do grande líder.

      Escolha um mensageiro. Diga-lhe que siga para Sirenia e conte a todos que Kerodon foi levado por Kaneus, mas que vencemos a dura batalha. Mande-o dizer que nosso Príncipe evitou o extermínio de nossa raça. Que os Ycrons foram derrotados por um pequeno exército de guerreiros que lutavam por sua liberdade, e pela liberdade de sua terra.

      Que os todos cantem canções – continuou Falco- onde alegrem seus corações pois que a morte de Kerodon e seus guerreiros, trouxe vida à um grande povo. Que os Ycrons em sua cegueira, destruíram a si mesmos. Que seu desejo pela destruição foi quem os matou. Um povo não sobrevive sem o outro.
Falco afastou-se. Era quase noite quando Kerodon morreu, mas não havia dor em seu rosto, apenas o sorriso daqueles que nasceram para vencer.

Onça
Em Sirenia, Columba sorriu ao ver a grande estrela cruzando o ar rumo ao céu. Nesse mesmo instante seu filho nascia e seu choro forte quebrava o silêncio e a angustia daquele povo. 

Ao seu lado, Manati baixava os olhos e em silêncio se retirava. Todos sabiam o significado daquela estrela, e das outras que já a aguardavam no céu.

Kerodon retornava à Guenardy, o paraíso de paz que abrigava os filhos de Kaneus. Há horas que seu povo contava as estrelas que subiam aos céus. Cada uma delas tinha um nome.

Pandion, Gueken, Blastocerus ,Wiedii , Piaya , Inia , Huika ,Auratsim, Didelphis, Alouata , Tayassu , Melro , Epicrates e Kerodon.

As estrelas dos guerreiros que haviam morrido para salvar  vidas.

Que o mundo viva em Paz.

Ekinate Kaneus



Sobre o Texto.

                         Cada um dos  personagens representa um dos animais abaixo, que os homens(Ycrons), em sua loucura cega, tentam destruir .Cada um deles correndo risco de extinção, por isso Kruzada, pela vida. Pela vida deles, pela nossa vida, pela vida do Planeta.

Kerodon Ruprestis-(Mocó) Pequeno roedor, quando ouve algum barulho, fica tão imobilizado que é difícil percebê-lo. Conhecido como Mocó, sua presença indica que o ambiente está preservado. 
Cariama Cristata –(Seriema)É arisca se perseguida, poucas vezes voa, mas corre tão ligeira que só um cavalo a alcança. A noite descansa em árvores, onde constrói seu ninho de ramos e barro. 
Didelphis albiventris – (Gambá) Mamíferos dos mais antigos do planeta. Com bolsa como o canguru, onde os filhotes se protegem. Tem hábitos noturnos e se alimenta de frutas . Enrola-se nos galhos das árvores.
Alouata Caraya ( Guariba) – Corpulento e ágil. Macho é barbado. São pretos e a fêmea amarelo escura. Vivem em bandos, guiados pelo macho mais velho.Uivam ou roncam, no topo das árvores. Alimentam-se de brotos , folhas e frutos. 

Tayassu Tajacu ( Caititu) – Porco do mato, vive em grupos com mais de cem. Come frutas, raízes e talos.Alguns animais pequenos também. É muito caçado. O Caipora vive montado no último caititu para evitar sua morte. 

Felis Concolor ( Onça-vermelha) Ou Suçuarana. Seu pelo é amarelo-vermelho, caça a noite e não é atrevida. Não ataca o gado e foge do homem. 

Falco Rufigularis- (Falcão)Ou gavião coleirinha, por causa  da coleira branca abaixo do pescoço. Valentão de 30 cm de comprimento. De visão aguçada. Usa os rochedos como ninho. 

Epicrates Cenchria ( Salamanta) Serpente sem veneno, conhecida como cobra de veado. Em contato com a luz, suas cores mudam.  Vive nos troncos e chega a dois metros. 

Cereus- (Mandacaru) Cactus 

Pilocereus Gounellei- Xiquexique- Cactus 

Melro( Turdus) Pássaro Preto, canta ao anoitecer 

Columba Picazuro(Asa Branca) Ave que possui uma faixa branca na asa. Familia dos pombos. 

Sirenia- Peixe-boi ou Manati 

Pandion- águia-pesquira 

Blastocerus dichotomus- cervo do pantanal 

Caiman latirostris – jacaré do papo amarelo 

Chrysocyon brachyurus – lobo guará (Nomes Indíginas: Gueken, guelken, huika(tehuelche septentrional). Indios Kamaiuras (alto rio Xingu)o auratsim.Tupí-guaraní: guará 

Ateles geoffroyi  - macaco aranha 

Tinamus solitarius – macuco 

Felis wiedii- maracajá 

Piaya cayana- Alma de gato 

Polyborus plancus- Carcará


 


Ekinate Kaneus
Deus o proteja




Simone Nardi 





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