quarta-feira, 9 de julho de 2014

Esquecendo o antropocentrismo filosófico - "releitura"

"Vi o solo semeado de rodas, de forcas,
de patíbulos, de pelourinhos; vi esqueletos
horrendamente estendidos sobre rodas.
Van Meenen - Congresso penitenciário de Bruxelas, 1847

Vamos provando aos poucos como é possível, em muitos casos, estudarmos a Filosofia e encontrarmos dentro dela, escondido de olhos puramente antropocêntricos, caminhos que nos levem a uma ética de Libertação Animal. O que ocorre normalmente com as pessoas é que, como não estão totalmente ligadas ao Mundo e a Natureza, não conseguem fazer uma imagem clara das coisas. Para elas seria algo como "Pensar o inexistente". Sem essa ligação com as coisas da Natureza, com esse "além da vida" puramente humana, se torna realmente difícil tornar livre do antropocentrismo tantos os mestres quanto os alunos de Filosofia. Quantas vezes ao nos depararmos com um ninho ou até mesmo com um pássaro diferente, e pararmos para admirar tal visão, as pessoas ao nosso redor nos olham com certa curiosidade e ficam, geralmente, espantadas ao notarem que nem haviam se dado conta de que tal ninho estivesse ali ou que tal pássaro rondasse o lugar? 

Elas normalmente não conseguem enxergar aquilo com o qual não estão sintonizadas, e sabemos que dentro desse rebanho social, as pessoas não estão sendo formadas para entrarem em sintonia com os animais ou com a Natureza. A maioria nem sabe quando as quaresmeiras florescem, nem como é um filhote de sabiá ou jamais viram uma coruja de perto, não porque ela não exista em sua região, mas porque essa imagem não faz parte da sintonia da pessoa, ela só vê aquilo que a programaram para ver, mesmo que o animal em questão cruze seu caminho, sua mente não o projeta, ela simplesmente não o vê, não porque não consegue, mas porque não está conectada a tal imagem. Assim também ocorre com a Filosofia, muitos só conseguem ler aquilo o qual foram programados para ler, do modo como seus mestres igualmente foram programados, porém, com um empurrãozinho, as pessoas passam a ter dentro de si, imagens que antes mal sabiam que existiam, assim ocorre também com o estudo filosófico.

Há um livro interessantíssimo de Michel Foucault que se chama "Vigiar e Punir", onde em seu início é narrado o suplicio de um "Ser"1 condenado pela Igreja, e os tipos de tortura as quais foi submetido pelo crime que cometeu. Hoje vemos muitas vítimas sendo submetidas a outros tipos de tortura e que, ao contrário de Damiens2, nada fizeram para merecerem esses suplícios. É através da "releitura" do texto desse filósofo, agora projetando dentro de cada um, imagens as quais jamais lhe foram dadas a conhecer, que poderemos comprovar que é imoral provocar sofrimento, posto que a dor se estabelece em todos os seres, que a vontade de viver também lhes é inerente, e que, qualquer ato contrário a isso se torna extremamente anti-ético. O livro inicia-se com essa narrativa da morte de Damiens, mas poderia ser a narrativa da morte de qualquer outro "Ser":

SUPLÍCIO
O corpo dos condenados
"Damiens fora condenado, a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento." (M. Foucault)
Todos os alunos do curso de Filosofia leram o primeiro capítulo do livro e ficaram horrorizados com tal brutalidade, como seria possível que existisse um tempo onde se praticasse tanta barbárie? Que homens eram aqueles que mutilavam e matavam sem qualquer tipo de remorso? O que a grande maioria desconhece, contudo, é que esses homens prosseguem até hoje em suas barbáries e com o consentimento desses mesmos alunos que ficaram tão revoltados. E se fizéssemos agora a projeção que eles não conseguiram ver, a ligação que não conseguiram fazer, pois não foram forjados a olhar além dos animais humanos?

SUPLÍCIO
O corpo dos condenados
"Sem nome" fora condenado à morte impiedosa, a portas fechadas dentro de uma sala com paredes brancas. Foi carregado a força, teve as "mãos" trespassadas por pequenos "cravos", os "pés" igualmente foram cravados, deixando-o a mercê de seus algozes. Seus olhos fitavam o rosto de seu torturador, que parecia ignorar-lhe o pedido de piedade. Seu peito foi aberto, e seus órgãos foram expostos até que a vida se esvaísse de seu corpo. As dores excessivas lhe tiravam gritos de agonia horríveis, que eram ignorados por aqueles que o cercavam. Depois disso seu corpo foi descartado como material biológico e seu sofrimento foi esquecido, porém repetido nos outros "sem nome" que lhe faziam companhia dentro da pequena cela."
Alguns, tal como Léon Faucher3, criaram então códigos de "ética", para que o sofrimento dos condenados fosse suavizado, o Comitê de Ética previa:

Art.1 - Celas maiores para os condenados, boa comida e cuidados de saúde, para que não morressem antes do suplício.

Art. 2 - Em casos especiais, era necessário o uso de drogas para que o condenado sentisse pouca dor e se mantivesse "vivo" até o fim do suplício.

Art. 3 - O condenado deveria ser "assassinado" de forma digna.

Art. 4 - O mesmo tipo de morte e de suplício só deveria ser repetido por carrascos especializados para isso.

Art. 5 - Não seria permitido repetir o mesmo suplício a menos que fosse estritamente necessário.

"O assassinato que nos é apresentado como um crime horrível vemo-lo sendo cometido friamente, sem remorsos". (Foucault - Vigiar e punir, pag. 12)

E esse é um tipo de crime que é cometido ainda hoje, nos mesmos moldes inquisitoriais, todos os dias e aprovado por inúmeros Comitês de Ética, sejam as portas fechadas de um laboratório de experimentação animal ou as portas trancafiadas de um abatedouro, a morte é a mesma, o suplicio perdura, e as pessoas tentam a todo custo, ignorar.

Para quem já leu as primeiras páginas do livro "Vigiar e Punir" , fica ainda mais fácil notar a comparação que há entre o que aconteceu ao infeliz Damiens e ao que acontece hoje em dia com os animais em tantos outros lugares4, uma realidade para a qual muitas pessoas ainda fecham os olhos, pois, como no livro, hoje ainda estamos sob o jugo do poder e da punição; o poder de algumas tradições e culturas que agem sobre nossa mente, o poder dos mais fortes sobre os mais fracos e nos calamos diante da acomodação mental que nos torna mansos e gentis, porque tememos ser punidos, e essa punição sabemos, virá de nossos próprios amigos, na forma da ridicularização por nossa opção alimentar, e isso nos apavora mais do que tudo. Fomos disciplinados para agir assim, e assim agimos, infelizmente. Não nos rebelamos porque pensar diferente nos torna "estranhos", e temos medo disso porque como um dia ridicularizamos aquele filósofo que nos mostrou a verdade sabemos que, ao ocuparmos o lugar dele, o mesmo ocorrerá conosco; só nós esquecemos de uma coisa: de que podemos mudar e talvez até sermos punidos pela mudança, mas mudar e aceitar a verdade é sempre melhor do que vivermos eternamente na caverna escura da mentira.

"O desaparecimento dos suplícios é, pois o espetáculo que se elimina; mas é também o domínio sobre o corpo que se extingue. Em 1787, dizia Rush: Só posso esperar que não esteja longe o tempo em que as forcas, o pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano."
Talvez seja esse pavor de ver-se extinguir o domínio sobre os corpos dos animais não humanos que mantenha o homem cego e surdo diante de tanta dor. E tal como dizia Rush, hoje podemos dizer o mesmo em relação ao pensamento das pessoas para com os animais não humanos, desejando que os abatedouros, os laboratórios, os circos , zoológicos entre tantos meios de exploração animal sejam nada mais nada menos, do que apenas lembranças tristes de uma humanidade que estava perdida.

Não podemos mais aceitar sem questionar, omitindo-nos diante desse suplício pelo qual os animais passam diariamente, esquecendo-nos que o que nos torna seres éticos é a ética que temos diante da vida. É essa a referência que desejamos mostrar as pessoas, a Liberdade de poder pensar além do que lhes é mostrado, a percepção de enxergar além do animal humano porque, embora os textos sejam totalmente antropocêntricos, libertos desse mal que atormenta a Ética, poderemos ver neles caminhos que nos levarão a Libertação Animal. Vamos realizar uma nova releitura dos antigos textos, vamos usar a Filosofia como "Mola", para alcançarmos coisas maiores que ela própria. Vamos libertar a Filosofia do antropocentrismo que a cega e que torna cego qualquer caminho para uma Ética de Libertação.

"Vi o solo semeado com o sangue de golfinhos, vi centenas de chicotes, correntes e celas de circos e zoológicos, vi agulhas e bisturis nos laboratórios, facas e marretas nos abatedouros; vi esqueletos horrendamente empilhados após suas peles serem arrancadas enquanto ainda estavam vivos...."

Ainda é possível acreditar que os suplícios realmente tenham acabado?



Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel - Vigiar e Punir


Notas

1 Expandi esse conceito de "Ser" igualmente aos animais, posto que lhes deve ser permitido fazer parte de nossa comunidade moral.
2 Nome do supliciado que nos é apresentado no primeiro capítulo do Livro Vigiar e Punir
3 Foi o responsável por redigir um regulamento que tornava mais "humana" as condições dos detentos pouco antes de sua execução, não impedia, contudo, as torturas durante a execução.
4 As touradas, sangrentas e bárbaras são vistas como tradição, o mesmo ocorre com a farra do boi, com as vaquejadas e os rodeios, tão aplaudidos por uma platéia que desconsidera a si mesmo, tanto quanto desconsidera aos animais.




 
 
Simone Nardi 
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão  Espírita Clara Luz que discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.








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