Baseada
 em uma visão
positivista e pragmática, a ciência utiliza animais como cobaia de 
experimentos. Mas será que não é mesmo possível utilizar métodos 
alternativos que não sacrifiquem e maltratem seres vivos?
Por João Epifânio Regis Lima* 
   
 
        
        
Por vivissecção entendemos o uso de animais vivos como 
cobaias em laboratórios de pesquisa biológica ou biomédica. Animais vêm 
sendo utilizados como cobaias em investigações e explorações sobre a 
natureza há muito tempo. Sabemos, por exemplo, que Aristóteles observou e
 dissecou cadáveres de animais e lemos algumas das conclusões por ele 
obtidas em sua História dos Animais ou em Partes dos Animais ou em seus 
textos sobre o Movimento dos Animais, a Progressão dos Animais e a Geração dos Animais. Sabemos também dessa prática, já no Renascimento, associada aos estudos de anatomia de  Andrea Vesalius
Andrea Vesalius  
  
        
ou mesmo de Leonardo da Vinci, em um momento em que a 
valorização do experimento preparava a revolução científica do século 
17. O passo decisivo, entretanto, para que a vivissecção assumisse a 
importância que hoje em dia lhe é atribuída no meio científico foi dado 
pelo fisiologista francês a Claude Bernard (1813-1878) em sua Introdução ao Estudo da Medicina Experimental,
 publicada em 1865. Claude Bernard é considerado o pai da moderna 
fisiologia experimental e o que fez para receber tal homenagem foi 
justamente tratar a vivissecção como parte indispensável do método 
experimental nas ciências biomédicas.
Claude Bernard (1813-1878) em sua Introdução ao Estudo da Medicina Experimental,
 publicada em 1865. Claude Bernard é considerado o pai da moderna 
fisiologia experimental e o que fez para receber tal homenagem foi 
justamente tratar a vivissecção como parte indispensável do método 
experimental nas ciências biomédicas.           
       
        
        
          
            |  | 
        
Questionamento
        Entretanto, o quadro apresentado acima, muito lido simplesmente 
como mais um capítulo enfadonho da história da ciência (deveríamos dizer
 "histórias das ciências"), suscita questionamentos importantes quando 
examinado mais atentamente. Considere-se, por exemplo, que a filha e a 
esposa de Claude Bernard, após o abandonarem, fundaram a primeira 
sociedade antivivisseccionista francesa, em reação aos horrores que 
presenciavam em sua própria casa. Bernard mantinha um laboratório e um 
biotério nos porões de sua residência, de onde se podia ouvir, dia e 
noite, os gritos desesperados dos animais que eram ali diariamente 
torturados. É importante saber que se estima que em apenas 15% dos 
experimentos envolvendo animais vivos é utilizado algum tipo de 
anestesia nos dias de hoje (WERMUS, 1984). No tempo de Bernard, esse 
número era certamente menor. Era comum entre os vivisseccionistas da 
época - e ainda é hoje em dia - uma concepção mecanicista acerca da 
natureza que, no caso específico das ciências biomédicas, confundia 
mecanismo com organismo
        
Segundo essa concepção, os seres vivos são considerados 
máquinas que obedecem apenas a leis mecânicas e que são incapazes de 
sentir dor. Essa ideia deriva da distinção entre corpo e alma proposta 
por Descartes, mas não sem lhe fazer injustiça. A injustiça vem da 
confusão que aqui se opera entre distinção e separação. Corpo e alma são
 substâncias distintas, diz Descartes nas Meditações e em As paixões da alma, mas inseparáveis.
        
A analogia, adotada por Claude Bernard, entre o grito do 
animal que sofre e o ranger das engrenagens de uma máquina explica-se - 
mas não se justifica - pela consideração unilateral e parcial do 
composto corpo-alma cartesiano. Deriva da atenção que se detém nas 
características do corpo segundo o que nos apresenta Descartes, mas 
esquece a unidade indissociável entre o corpo e a alma. Se tivermos, 
portanto, que pensar uma medicina cartesiana, será necessário pensar uma
 medicina psicossomática e não puramente mecanicista como aquela 
implicada no modelo assumido por Bernard.
        
        
"A concepção 
materialista acerca dos animais que os vê como meras máquinas 
bioquímicas, animais sem anima, incapazes de sofrer, inserese no 
contexto do desencantamento do mundo moderno"
Reducionismo Bioquímico
          O mecanicismo que impregna a concepção científica de natureza 
predominante na modernidade encontra no reducionismo bioquímico um 
aliado indissociável na formação do conceito de organismo que se 
disseminou nas ciências da vida e na medicina ocidental a partir do 
século 18. No contexto de tal quadro conceitual, é natural que se 
concebam procedimentos investigativos que operem o desmembramento do 
organismo em suas partes constituintes. Do estudo de tais partes 
segue-se o exame do todo por meio da consideração das relações que podem
 ser entre elas estabelecidas. Tais procedimentos analítico-sintéticos 
operam de acordo com as segunda e terceira regras cartesianas para a 
condução do espírito, a saber, a regra da decomposição (segundo a qual 
se deve dividir o objeto de estudo em quantas partes forem necessárias) e
 a regra da ordem (que preconiza a partir dos problemas mais simples 
para os mais complexos).
        
A concepção materialista acerca dos animais que os vê como meras máquinas bioquímicas, animais sem anima,
 incapazes de sofrer, insere-se no contexto do desencantamento do mundo 
moderno. Pensá-los assim torna menos problemático e incômodo, do ponto 
de vista ético, utilizá-los friamente como meros objetos de estudo. 
Ainda assim, o incômodo não é de todo eliminado, não sendo raro ouvir 
declarações de que a vivissecção é um mal necessário. Pensar em que 
medida a vivissecção é de fato necessária implica refletir sobre os 
elementos determinantes de um paradigma das ciências biológicas que 
inclui a vivissecção como técnica indispensável.
        
O mecanicismo reducionista mencionado certamente faz parte 
dessa história. Vejamos que outros elementos ainda poderíamos 
considerar. Uma coisa é crer na ciência como algo que dá a conhecer as 
coisas como são, resolve todos os reais problemas da humanidade e é 
suficiente para satisfazer todas as necessidades legítimas da 
inteligência humana; outra é crer que os métodos científicos devem ser 
estendidos, sem exceção, a todos os domínios da vida humana; e uma 
terceira é, dentro do contexto científico, crer em apenas uma forma 
particular de resolver problemas específicos. A primeira crença diz 
respeito à imersão na ideologia cientificista, a segunda na ideologia 
tecnicista e a terceira em um paradigma científico qualquer de caráter 
específico (no caso, aqui, considerado um paradigma que envolve a 
vivissecção).
        
        
          
            |  viés positivista Por "viés positivista",
 entende-se toda a visão da
 ciência ou da filosofia fundada
 na concepção do positivismo,
 isto é, a doutrina
 na qual a "ciência posivita"
 seria utilizada para o progresso
 da sociedade. O
 principal formulador teórico
 do positivismo foi Auguste
 Comte (1798-1857). Essa
 escola filosófica foi muito
 forte no final do século 19
 e marcou presença nas
 ciências naturais e sociais,
 na fi losofia, na criminologia
 e no direito, entre outros
 campos do conhecimnto.
 | 
        
Unindo o útil ao desagradável
        A "necessidade" da vivissecção apresenta um  viés positivista
viés positivista   
        
, na medida em que é concebida em termos pragmáticos. Revela,
 assim, um tom particular da cultura científica, por meio da exaltação 
das ideologias cientificista e tecnicista. Defender a vivissecção como 
técnica única (ou          
          unicamente confiável) de investigação nas ciências biomédicas é
 partir do princípio positivista de que apenas os fatos concreta e 
diretamente observáveis são fonte segura de conhecimento. Tal concepção 
tira sua grande aceitação de seu maior objetivismo pragmático, o que 
possibilita maior controle e operacionalização do mundo e, se quisermos 
incluir o contexto capitalista, de obtenção de lucros. 
        
Poderíamos perguntar: se a vivissecção é necessária, ela o é 
para quê? O aspecto relativo à sobrevivência da nossa espécie em sua 
luta contra as difi culdades impostas pelo ambiente nos vem 
imediatamente à mente. Tal preocupação direta com a sobrevivência não é,
 entretanto, nem o único nem o principal motivador da manifestação da 
necessidade da referida prática. Preocupar-se com a sobrevivência da 
espécie pura e simplesmente não implica, necessariamente, defender uma 
única forma de atingir esse objetivo. Certamente há, e a história e 
outras culturas insistem em nos mostrar, formas diversas de garantir a 
preservação de nossa espécie. A questão aqui é defender em massa uma 
técnica ou prática específica (vivissecção) como sendo a única 
seriamente capaz de dar conta do problema, o que parece não deixar 
dúvidas quanto a seu caráter ideológico e à afirmação de um paradigma. 
Tal paradigma é tido como fato consumado, e todo pensamento fica 
restrito a seus limites. Assim, por exemplo, quando alguém diz: "(...) 
se não fizermos em animais em quem iremos fazer?" "Não podemos fazer em 
seres humanos..." "Então vamos fazer isto em criancinhas?"
Raciocínio
        Não é vislumbrado o caráter eletivo da técnica, sendo o 
raciocínio construído apenas com os elementos fornecidos pelo paradigma.
 Ou seja, já se parte do princípio de que é necessário abrir e dissecar 
alguma coisa para que se chegue a um conhecimento confiável sobre a 
biologia do organismo desses animais. Isso não se discute; resta apenas 
decidir em quem realizar a exploração. Neste pensar-dentro-doslimites há
 uma ênfase e grande preocupação em dar continuidade e fazer progredir 
algo que já existe (o paradigma), que é fato consumado e acima de 
suspeitas (e, portanto não é alvo de críticas) e que se acredita só 
poder manter-se de uma única forma.
        
Examinemos alguns depoimentos colhidos de estudantes e 
pesquisadores praticantes da vivissecção (os depoimentos foram extraídos
 de livro de minha autoria, intitulado Vozes do Silêncio, publicação de 
minha dissertação de mestrado):
        
 "(...) se não fizermos isso, como vamos descobrir novos
 remédios e vacinas? Não vejo outra forma de testar métodos ou 
substâncias que poderão ser utilizadas em favor da humanidade." 
 "O uso destes animais é para o bem da ciência." 
 "Apesar do sacrifício destes animais, acho que há justificativa para o avanço da ciência." 
 "[a vivissecção] é necessária e já trouxe muitos avanços para a biologia, medicina etc." 
 "(...) desde que traga vantagens à ciência." 
 "Não sou a favor da (sic) matança por hobby! Sou apenas a favor do desenvolvimento da ciência." 
 "Em laboratórios científicos, os animais são sacrificados (mesmo com 
sofrimento, muitas vezes), mas em prol do avanço em pesquisas."
 " (...) [a vivissecção] é fundamental para o progresso da medicina."
        
        
Nota-se que não foi dito que o uso dos animais serve à 
sobrevivência do homem, mas ao bem da ciência e da medicina, que devem 
ser, elas e não o homem, perpetuadas. Sendo assim, a vivissecção 
serviria, para além da óbvia obtenção de informação acerca dos 
organismos, para o progresso e manutenção de uma forma específica de 
conhecer tida, ideologicamente, como a mais eficiente ou exclusiva. 
Nesse tipo de depoimento, dificilmente é feita referência a métodos 
alternativos ou substitutivos de pesquisa. Não se concebe outro modo de 
estudar a fisiologia dos animais. O caráter monolítico, unidimensional, 
acrítico e alienado dos discursos aponta a vivissecção como prática 
inercial e tradicional, além de parte integrante, tida como 
indispensável, do paradigma moderno das ciências biológicas. Vista como 
mal necessário, a prática da vivissecção cega cientistas e educadores 
para a busca de métodos alternativos ou substitutivos. Com ela, ficam 
ciência e homem empobrecidos.
        
        
*João Epifânio Regis Lima é 
doutor em filosofia e mestre em psicologia pela universidade de são 
paulo. é professor de filosofia da ciência e estética na universidade 
metodista de São Paulo
Referências
              
Descartes, R. Meditações metafísicas. Tradução de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 
              
_____________. O discurso do método. Tradução de Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
              
 _____________. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1989.
              
Kuhn, T.S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago, 1982. 
            
Lima, J.E.R. Vozes do silêncio: cultura científica e alienação no discurso sobre vivissecção. São Paulo: Instituto Nina Rosa, 2008.
             Wermus, D. Pour une Science Sans Violence; l'expérimentation animale en Suisse. Genève, Payot Lausanne, 1984
FONTE: Filosofia UOL
Gostou deste artigo?
Mande um recado pelo