Por Claudia Gelernter
Em se tratando de saberes e ações humanas, não existe assunto que não possa (e
não deva) ser analisado sob o enfoque Espírita, uma vez que se trata de
Doutrina fundamentalmente filosófica, reflexiva, profunda, evolutiva e
universal.
Como comenta o Dr. André Luiz Peixinho (FEEB), se compararmos o mundo com
um colar de contas, considerando que cada uma de suas peças representa os
saberes humanos (Medicina, Psicologia, História, Filosofia, Arte, etc.),
entenderemos que o Espiritismo não se enquadra na posição de mais uma destas
contas, mas sim como o cordão que as transpassa, devendo ser considerado,
portanto, ferramenta essencial para a análise de todos os fenômenos por nós
produzidos, sejam eles de ordem individual, social ou ambiental.
Sendo como é [e a partir dos pressupostos que nele se encerram], o
Espiritismo nos convoca a um pensamento racional, voltado à busca de respostas
congruentes, de acordo com o tempo histórico que vivemos e em comunhão com as
ciências e padrões ético-morais genuinamente cristãos.
Diante deste ponto fundamental, sentimo-nos impulsionados a discutir,
embora que de forma ainda superficial, a questão do vegetarianismo como opção
alimentar, e - mais que isso – como uma ‘filosofia de vida’.
O VEGETARIANISMO DISCUTIDO EM O LIVRO DOS ESPÍRITOS
O Espiritismo nasce para o mundo em abril de 1857, através de um livro
contendo perguntas e respostas, intitulado “O Livro dos Espíritos”. Nele,
encontramos diversas questões, referentes aos mais variados assuntos,
respondidas pelos Espíritos Superiores assim como por Allan Kardec que, de
forma brilhante, enriquece a obra com seus apontamentos lúcidos, coerentes.
Considerando a alimentação um tema relevante, Kardec propõe a seguinte
pergunta aos Espíritos:
723. A alimentação animal é, com relação ao homem, contrária à lei da
Natureza?
E os Espíritos respondem:
“Dada a vossa constituição física, a carne alimenta a carne, do contrário o
homem perece. A lei de conservação lhe prescreve, como um dever, que mantenha
suas forças e sua saúde, para cumprir a lei do trabalho. Ele, pois, tem que se
alimentar conforme o reclame a sua organização.”
Se analisarmos esta questão em separado de outras que se seguem e que serão
destacadas mais adiante, entenderemos que é lícito – necessário, até - que o homem
se alimente da carne animal a fim de conseguir as energias necessárias para a
execução de seu trabalho no mundo.
Entretanto, como toda a obra Espírita genuína, não devemos e nem podemos
prescindir do caráter evolutivo dela mesma. Disse Kardec que o Espiritismo
deveria ser revisto e ajustado aos conhecimentos trazidos pela ciência humana,
devendo caminhar de mãos dadas com ela, desde que seus axiomas [do Espiritismo]
não fossem feridos.
E, quais são estes axiomas?
São, basicamente: o amor como caminho; a evolução como meta; a razão como
bússola e a reencarnação como instrumento pedagógico.
Pois bem, em se tratando de questões alimentares, sabemos que a ciência
da nutrição é bastante recente na história humana. Só em 1902 surgiu o Curso de
nível Universitário na formação de dietistas – os precursores da nutrição - e é
somente em 1946 que a Organização Mundial da Saúde (OMS), com sede em Genebra,
inicia a divulgação e execução de programas específicos ligados à produção e
estudos sobre alimentos, marcando o aperfeiçoamento profissional da nutrição.
Portanto, não se trata de ciência existente na época de Kardec. Sendo
assim, seria impossível aos homens encarnados naquele tempo o acesso aos
conhecimentos nutricionais necessários a fim de desvendarem as propriedades dos
alimentos disponíveis na natureza.
Só muito recentemente esta ciência demonstrou que encontramos no reino
vegetal todos os nutrientes necessários para a promoção e manutenção de nossa
saúde, sendo desnecessário a uso de produtos de origem animal em nossa dieta
cotidiana.
Portanto, entendemos que seria leviano da parte dos Espíritos da
codificação, afirmarem que o Espiritismo condena o consumo de carne, pois as
informações sobre as alternativas nutricionais eram quase inexistentes naquele
tempo.
Entretanto, isso não se aplica nos dias de hoje.
Além deste fator, devemos levar em conta o nascimento de outras ciências
que, assim como a nutrição, surgiram posteriormente à formação do Espiritismo e
que dizem respeito ao meio ambiente.
Cabe-nos, então, seguir adiante no próprio Livro dos Espíritos, agora na
questão 724 proposta por Kardec:
724. Será meritório abster-se o homem da alimentação animal, ou de outra
qualquer, por expiação?
“Sim, se praticar essa privação em benefício dos outros. Aos olhos de Deus,
porém, só há mortificação, havendo privação séria e útil. Por isso é que
qualificamos de hipócritas os que apenas aparentemente se privam de alguma
coisa.”
Diversos estudos sobre questões ambientais têm apresentado evidencias robustas
de que o consumo de carne animal acaba por gerar problemas de ordem ambiental,
além de complicações físicas para o consumidor.
Em pesquisa realizada pela nutricionista Aline Martins de Carvalho, da
FSP (Faculdade de Saúde Pública da USP), descobriu-se que “o consumo excessivo
de carne foi verificado em grande parte da população pesquisada, com aumento
significativo ao longo dos anos, relacionado com pior qualidade da dieta em
homens e considerável impacto ambiental”. Concluiu ainda, que “as carnes vermelhas
e processadas têm sido relacionadas com aumento do risco de câncer de cólon e
reto, doenças cardiovasculares, diabetes e ganho de peso” (p. 01, 2012). Tal
dissertação resultou no artigo científico “Excessive meat consumption in
Brazil: diet quality and environmental impacts”, publicado na revista
científica inglesa Public Health Nutrition.
O IMPACTO AMBIENTAL E O CONSUMO DE CARNE
Apontados como grandes vilões do aquecimento global, a pecuária e o
consumo de carne estão sendo cada vez mais debatidos por biólogos,
ambientalistas, vegetarianos, além de diversos movimentos sociais.
Em entrevista cedida ao Instituto Humanitas, o biólogo Sérgio Greiff
explica que “A carne é responsável por grande impacto ambiental. Áreas naturais
(florestas, matas, cerrados, campinas etc.) precisam ser devastadas para a
abertura de pastos. Muitas pessoas associam a devastação nas florestas
tropicais ao corte de madeira. Na verdade, a contribuição das madeireiras para
essa devastação nem se compara à devastação causada pela pecuária, pois as
madeireiras selecionam apenas as árvores que interessam para o corte. Já o
pecuarista precisa se livrar das árvores indiscriminadamente”.
Diante destas evidências, a resposta oferecida pelos Espíritos na questão 724
de O Livro dos Espíritos coloca-nos em cheque, uma vez que deixa claro que a
privação da carne em prol do coletivo é relevante, meritória.
Levando-se em conta que nos tempos de Kardec os conhecimentos sobre
nutrição eram totalmente restritos, privar-se de carne consistia, portanto, em
ação grandiosa, altamente altruísta. Porém, nos dias de hoje, com todos os
recursos de que dispomos, entendemos que tal ação sai do âmbito da ampla
generosidade para tornar-se um dever.
Além disso, realizando pequeno exercício filosófico, devemos alinhar
nossos saberes com a questão de amarmos Deus acima de todas as coisas e ao
próximo como a nós mesmos. [ensinamento fundamental proposto pelo Cristo como
sendo o resumo da Lei e dos Profetas].
Como amar a Deus se confinamos, privamos e matamos suas criaturas pelo
prazer efêmero de nosso paladar, ocasionando tantos transtornos à nossa volta?
VEGETARIANISMO E ESPIRITISMO - UM DIÁLOGO NECESSÁRIO
Outra munição frequentemente utilizada pelos Espíritas ainda defensores
do carnivorismo apoia-se no fato de que o médium brasileiro Francisco Cândido
Xavier consumia carne, enquanto encarnado.
Construindo suas idéias em premissas infundadas, afirmam: “Chico Xavier
era carnívoro e Hitler era vegetariano, então...”
Com relação a esta situação, temos alguns pontos a considerar.
Primeiramente, necessário compreender que Hitler não se tornou
vegetariano por questões morais, mas sim por conta de um problema de saúde, na
área gástrica, segundo seus biógrafos. Conta-se, ainda que ele “roubava” carne
da cozinha, costumeiramente, o que denota seu conflito nesta questão.
Quanto ao médium, faz-se necessário separar a obra ditada pelos Espíritos
de suas ações, pois temos, ao longo de seus escritos mediúnicos, inúmeros
apontamentos em defesa do vegetarianismo.
Vejamos:
O Espírito Irmão X, em seu texto intitulado “Preparação para a Morte”,
buscando cooperar com os irmãos que logo mais atravessarão os portões do além
túmulo, inicia dizendo sobre a necessidade primordial de nos abstermos do consumo
de produtos de origem animal a fim de facilitarmos nosso ingresso no Plano
Espiritual. Recomendou-nos ele:
“Comece a renovação de seus costumes pelo prato de cada dia.
Diminua gradativamente a volúpia de comer a carne dos animais.
O cemitério na barriga é um tormento, depois da grande transição.
O lombo de porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, não
nos situam muito longe dos nossos antepassados, os tamoios e os caiapós, que se
devoravam uns aos outros.”
No livro Missionários da Luz, capítulo 4, o Espírito André Luiz, descreve o
ambiente de um matadouro aos leitores, dizendo estar junto de Alexandre, um
benevolente instrutor, que o faz compreender a questão do vampirismo
espiritual, naquele caso resultante das ações criminosas dos homens junto aos
animais. Comenta o instrutor de André que no futuro da humanidade o estábulo
será tão sagrado quanto um lar terrestre.
Entretanto, comenta que na atualidade, infelizmente “Os seres inferiores
e necessitados do Planeta não nos encaram como superiores generosos e
inteligentes, mas como verdugos cruéis”.
Oras, nem poderia ser de outra forma, dada a maneira como tratamos estes seres.
Alexandre continua seus ensinamentos, afirmando que nossos irmãos animais
“aceitam o cutelo no matadouro, quase sempre com lágrimas de aflição, incapazes
de discernir com o raciocínio embrionário onde começa a nossa perversidade e
onde termina a nossa compreensão”.
E, colocando-nos de frente com a questão paradoxal que nos envolve a
existência, comenta:
“Se não protegemos nem educamos aqueles que o Pai nos confiou, como germens
frágeis de racionalidade nos pesados vasos do instinto; se abusarmos largamente
de sua incapacidade de defesa e conservação, como exigir o amparo de superiores
benevolentes e sábios, cujas instruções mais simples são para nós difíceis de
suportar, pela nossa lastimável condição de infratores da lei de auxílios
mútuos?”
Neste ponto nevrálgico, relembramos a Oração Pela Paz, atribuída ao querido
Francisco de Assis, que nos convoca a sermos instrumentos de paz, de amor.
Parece-nos impossível conseguirmos apoio do mais alto se nos posicionamos
nas esferas mais baixas da vida.
E, colocando-nos a par sobre nosso papel diante desta urgente questão,
afirmou que “(...) na qualidade de filhos endividados para com Deus e a
Natureza, devemos prosseguir no trabalho educativo, acordando os companheiros
encarnados, mais experientes e esclarecidos, para a nova era em que os homens
cultivarão o solo da Terra por amor e utilizar-se-ão dos animais, com espírito
de respeito, educação e entendimento”.
Neste trecho fica explicito a convocação ao trabalho de educação dos seres,
levando as informações de que dispomos, a fim de alterarmos o cenário no mundo.
Prosseguindo com nossos estudos, citaremos agora o Espírito Emmanuel, no
livro “O Consolador”, com suas explicações que, por serem longas, porém
necessárias, serão copiadas abaixo, na íntegra:
“A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do
qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana.
É de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de
materialidade da criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esse
valores nutritivos podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem a
necessidade absoluta dos matadouros e frigoríficos.
Consolemo-nos com a visão do porvir, sendo justo trabalharmos,
dedicadamente, pelo advento dos tempos novos em que os homens terrestres
poderão dispensar da alimentação os despojos sangrentos de seus irmãos
inferiores.”
Poderíamos destacar ainda outros trechos de textos assinados por Espíritos que
ditaram suas idéias através de Francisco Candido Xavier, porém consideramos
desnecessário, uma vez que praticamente todos buscaram nos impulsionar para a
mesma direção – a do vegetarianismo consciente.
Entendemos, ainda, que o fato de ter consumido carne durante sua última
existência, em nada diminuiu a grandeza do trabalho realizado por Francisco
Cândido Xavier, que deixou certamente vasto legado de informações e exemplos superiores.
Cabe-nos, entretanto, como nos ensinava o mestre comum, Allan Kardec,
seguir adiante, de mãos dadas com os novos saberes que nos são apresentados,
reforçados e confirmados por diversas áreas do conhecimento humano.
Ademais, como destacado anteriormente, o Espiritismo, em seu aspecto
moral de justiça, amor e caridade, sempre condenou os excessos. Uma vez
comprovada a não necessidade da morte do animal para nosso sustento, devemos
trilhar outros caminhos, mais sensatos, corretos, éticos.
Por fim, compreendemos que a evolução do planeta passa, invariavelmente,
pela questão alimentar.
Este salto, importante e fundamental, ocorrerá a partir da mudança de
cada um, reconhecendo nos animais o próprio Criador em sua expressão de amor e
benevolência.
E então, congruentes com a Lei Maior, certamente trilharemos por caminhos
mais tranquilos, repletos de cooperação e crescimento.
Trabalhemos por isso!
claudiagelernter@uol.com.br
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO, A. M.; Tendência temporal do consumo de carne no município de São Paulo: estudo de base populacional – ISA Capital 2003/2008; dissertação de mestrado; FSP – USP; 2012. Disponível em http://www5.usp.br/17464/estudo-da-fsp-relaciona-consumo-excessivo-de-carne-com-impacto-ambiental/acessado em 21 de agosto de 2013.
HUMANITAS; O impacto ambiental do consumo de carne. Entrevista especial com Sérgio Greif e depoimento de Sonia Montaño, disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/10451-o-impacto-ambiental-do-consumo-de-carne-entrevista-especial-com-sergio-greif-e-depoimento-de-sonia-montano, acessado em 19 de agosto de 2013.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos, FEB, Rio de Janeiro, 1994 – Questões 723 3 724.
XAVIER, F. C.; O Consolador, por Emmanuel, Ed FEB, Rio de Janeiro, 21ª edição, 1998.
_____________ Missionários da Luz, Espírito Andre Luiz, Ed. FEB, Rio de Janeiro, 2005.
_____________ Treino para a Morte, Espírito Irmão X, Ed. FEB, Rio de Janeiro,
2002.
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