Foto: Sebastião Salgado |
Segundo o Cogito cartesiano “Penso, Logo Existo”, somente aquele que existe é capaz de pensar e assim ao pensar, é capaz de expressar-se através da linguagem. A questão é que, será que somente a linguagem humana e humana considerada civilizada, é demonstração de pensamento ou racionalidade, levando os corpos da capacidade de pensar a possibilidade do existir?
Se “Eu penso” e sendo
assim existo, que é de meu outro, aquele que diante de mim não me traz a
certeza de que ele pensa ou não? Falamos aqui de um conceito solipcista onde o
meu “Eu subjetivo” é quem fala pelo outro, quem dá ao outro o direito de
existir ou não existir tanto para mim quanto para o mundo de minhas relações.
Não importa o meu desconhecimento sobre ele e suas faculdades, pois se eu não o
compreendo se não o vejo utilizar-se da mesma razão pela qual me guio,
imediatamente ele deixa de existir para mim: “...nós que imaginamos agora que
nada existe fora do pensamento que verdadeiramente seja ou que exista[...] e
que somos somente porque pensamos.”(Descartes)
Se somos somente
porque pensamos, relacionamos uma imensa quantidade de outros seres no âmbito
da não-existência, ou seja, da total invisibilidade.Ele não pensa, ele não
existe, eu não o vejo. Pode-se com isso dar margem a um pensamento que mostre
que durante muitos anos colocamos na invisibilidade inúmeros seres vivos
somente porque acreditávamos que eles não racionalizavam como nós, os “humanos
civilizados”, primeiro porque não compreendíamos seu linguajar estranho aos
nossos ouvidos, então os chamamos de bárbaros, depois não aceitando seus costumes os escravizamos -
assim fizemos com os índios e com os negros - depois nos achando mais racionais
submetemos também as mulheres, e ainda hoje mantemos aprisionados na Moderna
invisibilidade outros seres vivos aos quais não compreendemos.
Um erro ou uma distorção da
realidade repetido dez vezes, cem vezes, mil vezes, torna-se verdade (ainda
mais quando sua proliferação emana dos grandes , dos poderosos, dos oficiais,
das instituições), esse tipo de mentira piedoso passa por certeza definitiva.
(Michel Onfray )
Imagem: Coruja |
Outra questão que talvez tenha permitido a dominação
violenta de muitos povos e dos demais seres vivos foi a dicotomia entre a alma
e o corpo também idealizada por Descartes. Ao separar corpo e alma o filósofo
chegaria à conclusão de que o pensamento existia apenas na alma, o que deu
margem a um pensamento de negação daquele a quem os dominadores acreditassem
“não possuíam pensamento nem razão”. Essa dicotomia permitiu uma dicotomia mais
violenta, a de que aqueles que se acreditam racionais porque pensam e assim acreditam
que existam, possam violar, dominar e
submeter qualquer outro ser vivo a quem ele
“racionalmente” imponha seu pensamento de que tais seres não possuam nem
alma e por isso, razão, ou seja : é a minha subjetividade que julga o outro.
Deste modo parece que a estes seres racionais tudo é permitido em termos de
violência, pois qualquer um que para ele não possua alma não é seu outro, não o
obrigando a ter por este qualquer
alteridade.
Talvez tenha sido a razão do Cogito Ergo Sum que
tenha considerado sem alma, portanto sem razão, os negros, os índios e as mulheres e talvez ainda seja a força do
cogito que faça com que a grande maioria das pessoas façam o mesmo em relação
aos seres mais marginalizados de todos, neste âmbito cartesiano: os animais. O
uso de correntes, de açoites, o encarceramento, o uso para diversão, os mais
diversos veículos de transportes como trens, navios e caminhões,os assassinatos
sem remorso de todos os seres humanos e não –humanos, são bem semelhantes ao
longo da história humana. Sem alma, sem razão, sem pensamento ou linguagem
inteligível ao meu eu e, portanto, sem dor. Os mesmos navios que transportavam
vidas humanas de um Continente ao outro, hoje transportam vidas desconsideradas
pelo Cogito : “...sobre o transporte de longa distância de animais
vivos, com objetivo de serem abatidos no local de destino: são viagens por
terra e pelo mar e que às vezes duram mais de 30 dias”. (Jaime Chatikin).Os
índios sofreram, os negros e as mulheres sofreram, os animais não-humanos ainda
sofrem sob o peso do Cogito tornando seus corpos invisíveis, seus gritos
silenciosos e suas dores despercebidas:
Com efeito, no
século subseqüente ao da morte de Descartes, seus seguidores celebrizaram-se
pelo tratamento cruel que davam aos animais no curso da pesquisa
experimental em fisiologia; sabemos que o próprio Descartes praticava a
vivissecção com aparente serenidade.(Cottingham)
Imagem: Cão de Pavlov(experimentação) |
O que podemos dizer é
que, contudo que outros igualmente disseram, a força do Cogito prevaleceu favorecendo
a invisibilidade do sofrimento animal, provavelmente porque incitava o orgulho
da espécie dominadora, seu dualismo entre a alma e o corpo tirou dos animais
qualquer direito ético e moral que um dia poderiam vir a ter, e encontrou solo
fértil na mentalidade humana extremamente antropocêntrica de sua época ,
refletindo sua força ainda nos dias de hoje. Essa razão reducionista de
Descartes talvez tenha contribuído imensamente para o solipcismo que
encontramos nos dias atuais, tanto entre os humanos quanto deles para s demais
espécies e entendendo-se para todo o Planeta: “O forte efeito da produção
pecuária, especialmente criação de gado, sobre o efeito estufa é muito bem
estabelecido, e novamente confirmado em nosso estudo. Um dos mais bem conhecidos
estudos é “A grande sombra da pecuária” (Elke Stehfest).
O espiritismo veio e provou que os animais possuíam
uma alma, que tal como a dos seres humanos, encontrava-se em processo
evolutivo, como se pode ler no Livro dos Espíritos.
597. Se os animais
têm uma inteligência que lhes dá uma certa liberdade de ação, há neles um
princípio independente da matéria?
R. Sim, e que sobrevive ao corpo.
R. Sim, e que sobrevive ao corpo.
Porém o que mudou desde a aceitação da alma dos
animais? Bem pouco, pode-se dizer, e é simples explicar os motivos. Vistos como
objetos os animais podem serenamente e descomprometidamente, serem utilizados a
bel prazer dos seres humanos. No dia a dia , embora muitos não percebam ainda,
a própria alimentação transforma seres vivos e sencientes em seres-objetos,
disponíveis e descartáveis. No momento do abate o animal não é visto como ser
vivo, mas como objeto a ser “desmontado”, fatiado e embalado. No momento em que
vai ao supermercado e se compra partes deste animal-objeto, mais uma vez não se
enxerga ali o irmão animal que possui alma, que reencarna e quem sabe um dia
foi ou virá a ser um animal de estimação. Esse quadro animal-alma, ser
reencarnante e Centelha Divina passa totalmente despercebido diante de nossa inssenssibilização
a determinados animais.
Quando se abandona um animal, a percepção daquele
“dono/proprietário” que o abandona é a de alguém que não vê ali um ser vivo ,
mas um mero objeto do qual deseja se desfazer. Para ele não há naquele ser
qualquer sentido ou significado, a consciência não vai acusá-lo de remorso, tal
como não acusa aquele que come carne ou aquele que pesca ou tantos outros tipos
de coisas que fazemos aos animais. Em cada um de nossos atos intencionais seja
de abandono, de rejeição, de tortura ou de exploração , não há a percepção do
animal-alma, do ser vivo dotado de senciência física e psicológica e o mais
agravante de tudo é que muitas vezes as pessoas não se dão conta dessa falta de
percepção em relação ao que possui vida. A exemplificação do animal-objeto é
facilmente perceptível por aqueles que estão ao lado dos animais-alma e é
dificilmente compreendida por aqueles que vêem apenas o lado animal-objeto.
A pesca esportiva, onde os animais são
retirados de seu ambiente natural a força após uma “briga” desleal com o ser
humano é um exemplo claro de animal-objeto. O anzol que lhe perfura a boca
extremamente sensível não é visto como causador de dor, pois o prazer de
retirar o peixe da água é maior do que a percepção de que o animal está em
sofrimento pois está lutando pela vida. Além disso, o ferimento na boca pode
fazer com que o peixe pare de se alimentar, o ferimento ainda pode infeccionar
e a lesão pode fazer com que ele seja atacado por peixes mais vorazes,
ocasionando-lhe a morte, morte essa que continua a ser imperceptível ao ser
humano que, mais uma vez preocupa-se com o prazer próprio, que geralmente eva o animal ao estresse, ao
medo e a dor. É falacioso asseverar que exista pesca esportiva sem crueldade,
não existe nenhum “pesque e solte” sem dor tal como não existe o “abate
humanitário”, essas expressões são apenas uma forma de manter nos seres humanos
essa visão de animal-objeto, de inferioridade que permite determinadas
violências contra determinados animais. É indiscutível a capacidade dos peixes
de sentirem dor ou medo, sua frequencia cardíaca se acelera tal como sua
respiração, como em todos os mamíferos, nos peixes também ocorre à descarga de
adrenalina nestes momentos adversos, de outra maneira por que lutariam tanto
contra os anzóis? Mesmo assim eles continuam sendo vistos apenas como
animais-objetos, desprovidos de alma e de qualquer sensibilidade.
Outro exemplo cotidiano e que passa
despercebido são os “cães de aluguel”. Cães utilizados para guarda de
terrenos/residências vazias que são deixados por seu “donos/proprietários” (que
detém propriedade sobre algo) e que são muitas vezes deixados sozinhos nesses
locais para efetuarem esse trabalho em troca de água, comida e abrigo.
Lembrando que muitos nem sequer possuem direito a esses três itens. Animais como
estes às vezes morrem de doenças que poderiam ser facilmente evitadas com uma
atenção especial a sua necessidade de ser reconhecido como animal-alma e não
como mero objeto. Problemas como bicheiras, desidratações por diarreias,
infecções por ferimentos corto-contusos , leptospirose e mesmo fome/sede entre
muitas outras ocorrências, levam muitos animais a óbito. No caso de bicheiras,
a exposição de uma ferida no animal, se bem cuidada e tratada logo em seu
surgimento evitaria o ciclo da miíase que
ocorre entre o 21º e 23° dias e
que pode, se não vista a tempo e dependendo do local onde ocorra, levar o
animal a morte. A leptospirose ocorre geralmente porque a ração e a água são
largadas num canto qualquer para que o animal se alimente enquanto o “dono/proprietário”
não retorne para visitá-lo e ver suas condições, isso pode levar de 3 a 5 dias
ou até mais. Esse período em que fica sozinho o animal pode machucar-se ou até
ser envenenado não recebendo socorro a tempo o que pode lhe ser fatal. Porém, o
“dono/proprietário” não o significando como animal-alma, não percebe que o
trata como objeto de lucro, um escravo moderno que trabalha na guarda por falta
de opção. Inúmeras outras visões de animal-objeto poderiam ser descritas aqui,
mas essas já são suficientes para fazer com que repensemos nossas ações
diárias.
Este pensamento
reducionista é o que está causando as atuais e perturbadoras ações contra
animais que temos assistido, tornando corpos invisíveis como o mecanicismo
cartesiano fez. Essa visão interfere na conduta humana em relação aos animais e
demais seres orgânicos e que tornam habitável o nosso Planeta. A questão que
fica é: será que os seres humanos desejam se desvencilhar do solipcismo que os
separa de todos e que os faz enxergar não o animal –alma, mas o animal objeto?
Esperamos que sim.
Simone Nardi
REFERÊNCIAS
CHATIKIN,Jaime . Os Novos Navios Negreiros. -http://www.anda.jor.br/2009/03/02/os-novos-navios-negreiros/
COTTINGHAM, Cottingham- Dicionário Descartes
DESCARTES, René . Os Pensadores . São
Paulo. Nova Cultural.
Kardec, Allan- O
Livro dos Espíritos
ONFRAY, Michel - Preâmbulo, a historiografia, uma arte da
guerra.
PEREIRA, Gomes. Antoniana Margarita .-http://www.filosofia.org/cla/per/per01.htm
e
http://www.filosofia.org/bol/not/bn008.htm
VEGA, Miguel Sanches. Estúdio
comparativo de la concepcion mecânica Del animal y sus fundamentos en Gomes
Pereira y Renato Descartes.-
http://www.filosofia.org/cla/per/1954veg4.htm
IHU
. A grande sombra da pecuária - (Livestock’s long shadow – FAO)
-http://www.ecodebate.com.br/2009/02/28/o-consumo-de-carne-e-a-degradacao-da-floresta-amazonica-entrevista-especial-com-elke-stehfest/
-http://www.ecodebate.com.br/2009/02/28/o-consumo-de-carne-e-a-degradacao-da-floresta-amazonica-entrevista-especial-com-elke-stehfest/
Os peixes são 'maquiavélicos', dizem cientistas-http://www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/story/2003/09/030901_peixinhog.shtml
Cientistas
dizem que os peixes sentem dor www.bbc.co.uk/portuguese/ciencia/030430_peixesmv.shtml
Cientistas afirmam que peixes sentem dor-www.noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,6752,OI104033-EI238,00.html
Pesque e solte é discutido por pesquisadores
www.comciencia.br/especial/aquic/aquic04.htm
Cientistas dizem que os
peixes sentem dor
http://www.homenews.com.br/article.php?sid=1029
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão Espírita Clara Luz que discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão Espírita Clara Luz que discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.
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