Imagem: Símio pensando |
Sim. Como os autistas
Temple Grandin, pesquisadora norte-americana, afirma que os mecanismos do "pensamento" animal são os mesmos das pessoas autistas.
Estudiosa do autismo, a norte-americana Temple Grandin (ela própria
autista) diz que sua forma de ver o mundo pode ajudar a compreender como
pensam os animais. Ao comparar mecanismos do “pensamento” animal com os
de autistas, ela aproxima os animais dos seres humanos e lança as bases
de uma grande polêmica científica
Quem ainda não parou, tocado no fundo do coração, diante do olhar
intenso e meigo de um cão labrador? Se você é ligado em animais, sejam
selvagens ou domésticos, certamente já se pegou admirado diante de tanta
expressividade e se perguntou: será que eles pensam? E, se pensam, o
que pensam? Para a ciência, essa também é uma pergunta recorrente,
origem de inúmeras pesquisas, centenas de dúvidas e muitas, muitas
controvérsias. Uma delas diz respeito aos novos estudos realizados pela
pesquisadora norte-americana Temple Grandin.
Recentemente, ela sacudiu os meios acadêmicos ao afirmar não apenas
que os animais pensam, mas também ao lançar uma teoria para explicar
como eles o fazem. Mais que isso: Temple deixou cientistas de cabelo em
pé quando comparou a mente de um animal à mente de um ser humano
autista. Para ela, animais e pessoas com autismo têm a mesma forma de
ver mundo e os mesmos mecanismos de “pensamento”.
Absurdo? Pode parecer, embora boa parte dessa polêmica seja amenizada
diante do fato de que a própria autora dessa teoria é autista e conhece
o assunto de um ponto de vista muito particular, único na história da
ciência. Aos 62 anos, Temple faz parte de uma estatística que aponta 20
casos a cada 10 mil pessoas (quatro vezes maior nos homens, de acordo
com a Sociedade Americana de Autismo), com vários níveis de
comprometimento do cérebro. No caso da pesquisadora, o autismo
manifestou-se num grau considerado baixo, o que permite que ela leve uma
vida muito próxima dos padrões de normalidade, interagindo
perfeitamente com o mundo que a cerca.
O termo autista, que provém do grego (autos significa “de si mesmo”),
foi usado pela primeira vez em 1906, pelo psiquiatra Plouller, mas foi
entre 1943 e 1944 que os pesquisadores Leo Kanner e Hans Asperger
lançaram as bases para o estudo mais sistemático do problema. Hoje, o
que se sabe é que o autismo é um transtorno definido por disfunções
físicas no cérebro, ocorridas antes dos 3 anos de idade, e caracterizado
por perda da comunicação, distúrbios nas habilidades físicas e
linguísticas, e em dificuldades na interação social.
Felizmente, nas últimas décadas, vários mitos em torno do autismo
foram derrubados. Um deles é o de que pessoas autistas vivem isoladas
“em seu mundo”. Na verdade, a falta de comunicação entre autistas e as
outras pessoas deve-se às dificuldades que eles têm de estabelecer uma
comunicação, muitas vezes até uma simples conversa, dependendo do grau
do transtorno.
No caso de Temple, o autismo foi diagnosticado aos 2 anos e, embora
ela tenha nascido num tempo em que o tema era muito pouco conhecido, em
1947, seus pais perceberam seu problema e deram estímulo e ensino
adequados para ela se tornar uma profissional respeitada no meio
acadêmico e científico. Formou-se em psicologia em 1976 e desenvolveu
vários trabalhos científicos que vêm ajudando pesquisadores de todo o
mundo a entender melhor essa lacuna na medicina. Hoje, possui vários
livros publicados e o título de Ph.D. (equivalente ao doutorado no
Brasil) pela Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
Portadora de uma forma leve de autismo, Temple Grandin conquistou uma
posição respeitável nos meios científicos e acadêmicos. Sua perspectiva
de autista lhe proporciona abordagens inovadoras sobre esse transtorno.
Depois de se dedicar à mente humana, Temple se especializou em
comportamento animal. Em 1975, fez seu mestrado em ciência animal e mais
tarde doutorou-se na mesma área, aperfeiçoando ainda mais seu trabalho
com animais e dando os primeiros passos em direção às atuais
descobertas. Suas principais ideias sobre o pensamento dos animais estão
defendidas no livro Na língua dos bichos, escrito em parceria com a
jornalista Catherine Johnson e lançado no Brasil em 2005.
Antes mesmo de seus estudos, a relação de Temple com os animais já
era marcante. Quando criança, estudou numa escola especial e descobriu
que o contato com animais, em especial os cavalos, auxiliava na
superação de vários problemas emocionais. Mais tarde, tornou-se
referência mundial no que se costuma chamar hoje de estudos do bem-estar
animal. Sua preocupação com eles está presente até na hora da morte,
pois projetou um sistema de abate que poupa o gado do estresse e do
pânico antes de ser sacrificado. Construído de forma circular e todo
coberto, esse sistema é usado por metade dos matadouros dos EUA, pois
evita que o gado se assuste com sons e movimentos bruscos vindos de fora
e ao mesmo tempo impede que vejam o que há pela frente. Seja como for, o
sistema dá certo e ajuda a explicar sua teoria de que os animais
enxergam muito mais detalhes do que um humano. Segundo ela, um porco
evita atravessar um local por ver poças d’água com reflexos, pois podem
parecer coisas assustadoras. Para Temple, isso ocorre também com alguns
autistas, mais sensíveis a mudanças insignificantes do ambiente onde
vivem. Mas as comparações entre autistas e animais não param por aí.
Para ela, uma das semelhanças entre o funcionamento da mente de um
animal e de um autista diz respeito à maneira de processar as
informações visuais que chegam ao cérebro. “Pessoas normais veem e ouvem
de forma seletiva, com uma ‘peneira’ que filtra o que vai ser realmente
compreendido pelo cérebro”, diz Temple. A partir de várias pesquisas
com animais em cativeiro, ela percebeu que eles possuem um processo
distinto de absorver o mundo que os cerca, que permite acessar todas as
informações sensoriais brutas.
Os animais pensam?
Para diversas pessoas, é muito difícil aceitar a ideia de que formas
mais inferiores de vida, tais como vermes ou carrapatos, sejam capazes
de pensar e exibir consciência, planejamento a longo prazo ou raciocínio
abstrato, as marcas fundamentais de uma mente. Mas poucos duvidam de
que os grandes símios, primatas antropoides, como gorilas, bonobos,
orangotangos e chimpanzés (estes últimos compartilham impressionantes
98% do seu genoma com os seres humanos) possuam coisas que parecem ser
pensamento e cultura.
Em artigo sobre a evolução da inteligência humana publicado na
revista Cérebro & Mente, o neurocientista paulista Renato M. E.
Sabbatini argumenta que a inteligência não é uma propriedade única aos
seres humanos. “A inteligência humana parece ser composta de várias
funções neurais correlacionadas e que cooperam entre si, muitas das
quais também estão presentes em outros primatas, tais como destreza
manual, visão colorida estereoscópica altamente sofisticada e precisa,
reconhecimento e uso de símbolos complexos (coisas abstratas que
representam outras), memória de longo prazo, entre outras.
De fato, a visão científica corrente é que existem vários graus de
complexidade da inteligência presente em mamíferos e que compartilhamos
com eles muitas das características que previamente pensávamos ser
exclusivas do ser humano, tal como linguagem simbólica, que se comprovou
também ser possível em antropoides. O estudo da evolução da
inteligência humana forneceu evidências de que parece haver uma “massa
crítica” de neurônios de maneira a conseguir consciência semelhante à
dos humanos, linguagem e cognição, mas que essas propriedades da mente
parecem estar já presentes em outras espécies com cérebros altamente
desenvolvidos, embora em forma mais primitiva ou reduzida.
O problema é que os seres humanos sabem que outros humanos têm mentes
iguais às suas, porque podemos compartilhar essas experiências entre
nós, através da linguagem simbólica. Outros animais são incapazes de
comunicar isso diretamente a nós, porque eles não têm linguagem ou
introspecção. Entretanto, os estudiosos da comunicação simbólica dos
antropoides, tais como os que fizeram experimentos que foram capazes de
ensinar orangotangos, gorilas e chimpanzés a usar linguagens
artificiais, são rápidos em afirmar que eles possuem fortes evidências
de que isso é verdade. “Experimentos com os chimpanzés Koko e Washoe e
com o gorila Kenzi demonstraram que eles eram capazes de inventar novas
palavras, construir frases abstratas e expressar seus sentimentos
através da Linguagem Americana de Sinais (para surdos-mudos) ou
linguagens simbólicas baseadas em computadores”, escreve Sabbatini.
“É o que ocorre também no cérebro dos autistas”, afirma a
pesquisadora. Segundo ela, pessoas normais usam os lobos frontais e o
neocórtex para juntar os estímulos dos órgãos dos sentidos num todo
coerente, que estabelece um limite de acesso a essas informações
sensoriais brutas. Embora os autistas tenham essas partes do cérebro
normais, elas não estão totalmente ligadas ao resto do cérebro, não
permitindo essa filtragem. Para ela, o fato de os animais também terem o
neocórtex pouco desenvolvido justificaria tal semelhança.
Para Temple, ainda existem semelhanças na forma de se relacionar
emocionalmente com o mundo. “Emoções como raiva, medo, curiosidade,
atração sexual e laços sociais como a amizade são básicas para ambos,
pois tanto animais quanto autistas têm menor capacidade de associar
coisas o tempo todo, o que ajuda a manter os sentimentos mais
separados”, diz a pesquisadora. “Ambos têm uma percepção mais amena da
dor por conta da possível falta de conexão entre a dor e sentimentos
como a preocupação e a ansiedade.”
As afirmações de Temple causaram muita polêmica na comunidade
acadêmica e, logo após ter lançado seus artigos, cientistas do mundo
todo opuseram-se aos pontos de vista ali defendidos. Para muitos, ainda é
difícil fazer essa equivalência de funções cognitivas, o que exigiria
mais pesquisas tanto do cérebro animal como dos humanos. Para outros, é
muito perigoso fazer esse tipo de comparação, que poderia gerar uma
distorção do autismo e até mesmo suscitar comparações esdrúxulas entre
humanos e animais, ou suscitar o preconceito com os autistas. Os
pesquisadores também contestam que os animais tenham acesso privilegiado
a níveis básicos de informação sensorial. Defendem que tanto os animais
como os humanos processam a informação segundo regras, uma função
especializada do hemisfério esquerdo do cérebro observada em ambos.
Para temple, o fato de animais e autistas terem o neocórtex pouco
desenvolvido ajuda a explicar suas limitações no processo do pensamento
Em sua defesa, Temple diz que uma das causas da discórdia está no
modo como as informações são apreendidas pelos não autistas, que pensam
com linguagem, enquanto os autistas e animais pensam a partir de dados
sensoriais brutos. Ela acrescenta que seu cérebro e o dos animais
funcionam como a internet, na qual se pode acessar qualquer tema a
partir de uma busca. “No nosso caso, porém, essa busca é 100% visual”,
completa.
Diante dessa controvérsia, cientistas se apoiam principalmente no
fato de as ideias de Temple não estarem baseadas em provas físicas
concretas – em grande parte das vezes, elas se apoiam em sua própria
experiência pessoal. No entanto, todos concordam que seu trabalho tem
revelado um vasto conhecimento no que diz respeito ao autismo e à
percepção dos animais. Enquanto isso, seguimos observando os olhos
desses seres que sempre fizeram parte de nossa vida, do nosso meio, e
que, muitas vezes, nos ajudam a compreender melhor o mundo. E a nós
mesmos.
João Correia Filho
Para saber mais
• Temple Grandin e Catherine Johnson,Na língua dos bichos, Ed. Rocco, 2005
• Tim Radford, “Do animals think?”,Guardian, dezembro 2002
• Sabbatini, R.M.E., “The evolution of human intelligence”.Brain & Mind, 12, 2001
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