“Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Citado no “Livro dos conselhos”,
de El-Rei Dom Duarte.
Citado no “Livro dos conselhos”,
de El-Rei Dom Duarte.
A maioria já deve ter lido ou ao menos ouvido falar do livro “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago; vamos apenas pincelar o livro que narra como de repente uma cegueira branca vai se espalhando, contaminando e tomando conta das pessoas; a princípio parece ser incurável e aos poucos toda a humanidade vai ficando cega, reduzida a seres meramente instintivos. Em meio a tanto terror, apenas uma pessoa não perde a visão e é ela, sozinha, que os guia dentro dessa cegueira branca, dentro desse mundo desconhecido e assustador. O filme retrata como o ser humano é capaz de perder anos de civilização ao ser privado de um de seus sentidos. É possível compreender no livro a necessidade dos “cegos”, em confiarem naquele único ser que enxerga, de modo a poderem se humanizar e se socializar novamente, pois o governo os envia a um sanatório e, quanto mais pessoas chegam, mais deplorável fica o lugar. Começam a surgir disputas pela comida e pelo domínio do sanatório, situações constrangedoras fazem com que os personagens comecem a se questionar sobre sua dignidade, seu auto-respeito e seu orgulho.
Por trás do livro podemos notar que Saramago não trata apenas da
cegueira física, mas da cegueira moral dentro da qual a sociedade se
encontra, e sabemos que todo esse orgulho e dignidade são deixados de
lado quando o animal humano é posto diante do animal não humano. Em
confronto com um ser que ele julga inferior, o animal humano esquece que
é civilizado e se bestializa de tal forma que perde sua verdadeira
identidade, seu orgulho e seu auto respeito, descendo a níveis que os
animais não humanos não conseguem alcançar, a própria “miséria moral”.
Foi há muitos anos atrás que essa cegueira branca teve início, ao matar
no animal humano todo seu senso de moral, compaixão é ética pelos
animais não humanos. A ética social, tal como no livro, desmoronou desde
então. O animal humano cego pelo orgulho e pela vaidade separou-se da
natureza, espezinhou-a e aos seus outros filhos, os animais, com a mesma
crueldade com que trata tudo aquilo que lhe é diferente. Nessa sua
cegueira, a humanidade é capaz de ignorar o fato de que há uma igualdade
senciente entre nós e os animais, é capaz de se manter cega diante de
tanto sofrimento, ensaiando o dia em que consiga obter a coragem de
enfrentar seus medos em resistir à cegueira a qual a condicionaram.
“O medo cega, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos
cegou, o medo nos fará continuar cegos.[...] Quantos cegos serão preciso
para fazer uma cegueira, Ninguém soube responder.” (J. Saramago)
Quanto ainda será preciso mostrar, demonstrar, expor, falar ou
escrever sobre o sofrimento animal, antes que os “cegos da ética” notem
que estão errados, que estão com medo e que esse medo os cega. Quanto
ainda teremos que pedir para que abram seus olhos, pois somente assim
essa cegueira se dissipará e a ética voltará a se fazer parte da
sociedade? Esse cegos contemporâneos são cegos do coração e da alma, são
cegos da moral e da ética, guiam outros cegos e conhecemos a velha
frase que nos diz: “Cegos guiando cegos,ambos cairão no abismo”. Já
estamos caindo no “abismo” a cada dia que passa, por todo o desrespeito
que as pessoas mostram em relação aos animais; é a humanidade quem polui
o seu próprio ar, que contamina sua própria água, que apodrece sua
própria terra, que desrespeita a eles, os animais não humanos e em
igualdade, a si mesma, mas a maioria ainda deseja se manter cega diante
disso. Essa cegueira não os deixa ver aonde pisam nem em quem pisam, não
os deixa livres para escolherem qual caminho tomar, qual posição
escolher.São cegos que temem enxergar, porque fazem tantas coisas ruins
aos animais que se envergonham, e se fecham cada vez mais dentro de uma
cegueira manipulada e cruel.
“Por que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a
razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso
que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que vendo, não vêem” (J.
Saramago)
Essa á a grande parcela da humanidade hoje diante da exploração animal, cegos que vendo, ainda assim fingem não ver, que diante da repulsa que a visão do sofrimento animal acarreta, com uma insensibilidade fora do normal, conseguem ignorar o que lhes mostrado, que hibernam em seus costumes e tradições bárbaras com medo de enxergar a verdade de seus atos cruéis.
“Por que cegamos?”
Porque passamos a nos achar seres privilegiados, seres mais fortes,
mais poderosos e, no entanto, nos tornamos seres mais cruéis, mais
frios, mais irracionais. Não somos cegos, estamos cegos diante daquilo
que não desejamos ver, a agonia animal que praticamos todos os dias.
Assim como os personagens de Saramago perderam o senso de civilidade,
hoje, os cegos contemporâneos, perderam o senso de civilidade junto a
natureza, junto aos animais, tornaram-se egoístas ao fazerem da Terra,
um Planeta para uso exclusivo de animais humanos.Não dividem, não doam,
ao contrário, tomam a força, ameaçam, humilham, matam, violam e
desmoralizam qualquer ser que se oponha a essa cegueira.
Saramago diz que deseja que seu leitor sofra ao ler o livro, tanto
quanto ele sofreu as escrevê-lo. E hoje nós sofremos por essa cegueira
que perdura há séculos, séculos de tortura, de morte e muito sangue. Tal
como o livro, a vida dos animais tem sido um capítulo brutal e
violento, repleto de experiências dolorosas e aflições sem fim.
“Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso.” (J. Saramago)
O que nos falta para reconhecermos isso, então? O que nos falta para enxergarmos que, o que fazemos com os animais se opõe a qualquer ética que tentemos criar para nos proteger uns dos outros? Que falta para as pessoas abrirem os olhos e enxergarem que os gritos de agonia só irão cessar quando elas mudarem? Não somos cegos, repito, estamos cegos, e ser cego é uma opção.
A cura para essa cegueira nada mais é do que a aceitação verdade, e a
verdade é que realmente não somos bons que, embora o veganismo nos guie
para a moralização ética, nós nos afastamos desse guia por medo de
descobrirmos que não somos aquilo que pensamos que éramos: seres
bondosos e racionais. Temos medo, tanto quanto os cegos de Saramago, de
caminharmos por esse mundo desconhecido e assustador que é o respeito
aos animais não humanos, não estamos acostumados a respeitá-los, somos
orgulhosos demais, porém a cegueira nos tem feito viver num mundo
igualmente deplorável ao sanatório onde os cegos de Saramago viviam,
fingimos não ver, mas sentimos o cheiro da morte e da nossa sujeira.
Quando será que a humanidade se desvencilhará dessa cegueira para
alcançar a sua lucidez, pois qualquer pessoa que saiba sobre o
sofrimento animal e nada faça a esse respeito, está cego e perdeu parte
de sua sanidade. Seria irracional nos colocarmos como seres racionais
diante da visão do abate de um animal, diante da vivissecção, diante das
touradas, bem mais fácil realmente seria essa posição ocupada pela
grande massa, a de seres cegos e insensíveis a dor, não há como explicar
de outro modo como alguém que tendo conhecimento sobre o que acontece
com os animais, não mude, nem tente mudar.
É preciso que nos se humanizemos e nos socializemos novamente com a
natureza, com os animais, com o mundo no qual vivemos, precisamos ter
coragem para abandonarmos a cegueira de anos e anos de exploração
animal, por uma conduta mais digna, pois o ser humano que usa de sua
força contra um ser qualquer, não é digno, nem possui qualquer valor
moral e os animais humanos necessitam, urgentemente, se moralizarem
perante a natureza e sobretudo, diante dos animais não humanos.
“Se puderes olhar, vê. Se podes ver, repara.”1
Se podes enxergar e reparar, então que esperas para mudar?
Nota
1 Metáfora sobre aqueles que tendo visão, se recusam a ver, pois é
bem mais fácil ignorar as coisas que fazemos de mal aos outros seres do
que passarmos a nos enxergar como verdugos cruéis.
Simone Nardi
Referência
José Saramago -Ensaio sobre a cegueira
Referência
José Saramago -Ensaio sobre a cegueira
Simone Nardi – criadora deste blog e do antigo Consciência Humana, colunista do site Espírita da Feal (Fundação Espírita
André Luiz) ; é fundadora do Grupo de Discussão Espírita Clara Luz
que
discute a alma dos animais e o respeito a eles.Graduada em Filosofia e
Pós-graduada em Filosofia Contemporânea e História pela UMESP.
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